Popol Vuh

Definição

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 21 Março 2014
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Disponível noutras línguas: Inglês, francês, espanhol
Seven Macaw or Vucub-Caquix (by Flickr User: Urban Sea Star, CC BY-NC-ND)
Sete Arara ou Vucub-Caquix
Flickr User: Urban Sea Star (CC BY-NC-ND)

O Popol Vuh é a história da criação conforme os maias quiché da região conhecida hoje como Guatemala. Traduzido como “O Livro do Conselho”, “O Livro do Povo” ou, literalmente, “O Livro da Esteira”, a obra costuma ser mencionada como “A Bíblia Maia”, ainda que se trate de uma comparação imprecisa. O Popol Vuh não é considerado pelos maias como a “palavra de Deus” nem uma escritura sagrada, mas sim um relato do “mundo antigo” e do entendimento dos quiché sobre a cosmologia e criação antes da chegada do cristianismo. Os quiché referiam-se ao livro como um Ilb'al – um instrumento de visão – e ficou conhecido como “O Livro da Esteira” por causa das esteiras tecidas nas quais o povo se sentava para ouvir a recitação da obra na casa do conselho. Um edifício deste tipo, em Copán, apresenta linteis de pedra “tecidos” para se assemelhar a material de revestimento.

No início do Livro I, o autor desconhecido declara:

Este é o início do mundo antigo, aqui neste local chamado Quiché. Aqui devemos inscrever, devemos implantar o Mundo Antigo, o potencial e fonte de tudo feito na cidadela de Quiché, na nação do povo quiché […] Devemos escrever sobre isso em meio às pregações de Deus, na Cristandade de agora. Devemos divulgar isso porque não há mais um lugar para vê-lo, o Livro do Conselho, um lugar para ver “A Luz que veio além do Mar”, o relato de “Nosso Lugar nas Sombras”, um lugar para ver “O Nascimento da Vida”, como é chamado (63).

Com respeito a estas frases descrevendo o Popol Vuh, o maianista Dennis Tedlock afirma:

Porque eles obtiveram o livro (ou alguma parte dele) numa peregrinação que os levou das terras altas à costa do Atlântico, o chamaram de "A Luz que veio além do Mar"; porque a obra contava eventos que aconteceram antes do primeiro amanhecer verdadeiro, num tempo em que seus ancestrais escondiam-se e as pedras que continham os espíritos familiares de seus deuses nas florestas, a chamaram também de "Nosso Lugar nas Sombras". E porque contava a ascensão da estrela da manhã, do sol e da lua e previa o surgimento e esplendor radiante dos senhores quiché, o chamaram "O Amanhecer da Vida" (21).

A obra reconta a Criação, as explorações dos heróis gêmeos Hunahpu e Xbalanque e a história inicial da migração quiché.

A obra reconta a Criação, as explorações dos heróis gêmeos Hunahpu e Xbalanque no submundo e seu triunfo sobre os Senhores da Morte, a criação dos humanos e a história inicial da migração quiché e de seus assentamentos até a Conquista Espanhola, no século XVI. O bispo espanhol Diego de Landa queimou todos os livros dos maias de Yucatán que pôde encontrar em 12 de julho de 1562, na cidade de Mani mas, como não tinha jurisdição sobre a região meridional dos quiché, o Popol Vuh acabou sendo poupado. Ainda assim, a obra parece indicar que as práticas da religião indígena foram reprimidas na terra Quiché, como nos demais lugares, e que o autor anônimo sentiu a necessidade de colocar por escrito os mitos de seu povo antes que fossem perdidos.

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Origem e História

O Popol Vuh foi provavelmente escrito por volta de 1554-1558, num período em que se tornou bastante claro que as práticas e crenças antigas dos maias não seriam mais toleradas pelos conquistadores cristãos. Dennis Tedlock estabeleceu esta data baseado na evidência textual encontrada no final da obra, na qual o autor detalha migrações, genealogias e assentamentos. Chamou a atenção de um padre espanhol logo no início do século XVIII. Tedlock escreve:

Entre 1701 e 1703, um frade chamado Francisco Ximenez deu uma olhada no manuscrito enquanto servia como padre da paróquia. Ele fez a única cópia sobrevivente do texto quiché do Popol Vuh e adicionou uma tradução em espanhol. Seu trabalho permaneceu em posse da ordem Dominicana até a Independência da Guatemala mas, quando reformas liberais levaram ao fechamento de todos os mosteiros, em 1830, foi adquirido pela biblioteca da Universidade de San Carlos, na Cidade da Guatemala. Carl Scherzer, um físico austríaco, deparou-se com o texto na instituição em 1854, e Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, um padre francês, teve a mesma sorte poucos meses depois. Em 1857, Scherzer publicou a tradução espanhola de Ximenez em Viena, sob o patrocínio dos Habsburgos, membros da mesma linhagem real que havia governado a Espanha na época da conquista do reino Quiché. Em 1861, Brasseur publicou o texto quiché e uma tradução francesa em Paris. O próprio manuscrito, que Brasseur levou clandestinamente para fora da Guatemala, eventualmente encontrou seu rumo de volta através do Atlântico, proveniente de Paris, passando a fazer parte da Biblioteca Newberry em 1911 (27).

O manuscrito, atualmente dividido em quatro livros, originalmente não continha divisões, numa narrativa contínua registrada a partir da tradição oral. A própria obra, porém, menciona um “livro original e escritos antigos”, sugerindo que o autor do Popol Vuh trabalhou a partir de uma fonte escrita anterior. O autor também declara que estes trabalhos anteriores estão em posse de alguém que “tem uma identidade oculta”, indicando que as obras religiosas dos maias precisavam ser escondidas dos cristãos que poderiam destruí-las, assim como fez de Landa em Mani, em 1562. De Landa registrou a queima de mais de quarenta livros e escreveu: “Encontramos um grande número de livros e, como não continham nada além de superstições e mentiras do demônio, nós os queimamos, o que [os maias] lamentaram de forma impressionante, causando-lhes grande aflição” (Christenson, 11). Os maias tinham confiado em de Landa, mostrando-lhe voluntariamente seus livros; uma honra não concedida a todos os missionários cristãos. Ele queimou mais de quarenta obras maias e milhares de estátuas e pinturas numa única noite. Somente quatro obras dos maias yucatán sobrevivem nos dias atuais (os códices de Dresden, Madri e Paris, assim chamados por causa das cidades para onde foram levados, e o Chilam Balam) e somente um dos quiché: o Popol Vuh.

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A Estrutura do Popol Vuh

A obra se divide num breve preâmbulo e quatro livros. O preâmbulo declara a intenção do autor de escrever a obra, estabelece sua época como pós-conquista e insiste que a obra original "leva um longo desempenho e relato para completar a luz de todo o céu da terra" (63). Isso sugeriu a alguns estudiosos que a obra original seria muito mais longa que o atual Popol Vuh mas, para outros, simplesmente significa que deveria levar tempo para ouvi-la e apreciá-la devidamente. O manuscrito existente não parece conter lacunas na narrativa mas, desde que não há registro da obra anterior - e nenhuma evidência além da linha do preâmbulo aludindo a ela, além de outra no final - não há meio de saber o que o autor pode ter deixado de fora ou se realmente isso ocorreu. O maianista Allen J. Christenson, que traduziu o livro, o considera completo e o último remanescente das obras do povo pré-colombiano maia quiché.

Christenson cita Bartolomeu de Las Casas, missionário espanhol do século XVI que fazia parte da minoria de religiosos solidários que lamentava a destruição dos livros maias. Las Casas viu várias obras dos quiché maias em 1540. Christenson escreve:

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Ele relatou que elas continham a história das origens e crenças religiosas do povo, escritas com “figuras e caracteres os quais podiam significar tudo o que desejavam; e que estes grandes livros são de tal sagacidade e técnicas sutis que diríamos que nossa escrita não oferece muita vantagem”. Las Casas ficou particularmente impressionado pelo fato de que os maias tinham condições de redigir “tudo o que desejavam”. De fato, os maias eram o único povo no Novo Mundo que dispunha de um sistema de escrita com esta capacidade na época da Conquista Espanhola (23).

Todos estes livros que, na época de Las Casas, foram cuidadosamente escondidos dos missionários cristãos e suas fogueiras, acabaram eventualmente descobertos e destruídos por eles. Se algum deles ainda existe, está por ser descoberto.

Mesoamerican Ballgame Players
Jogadores de Bola Mesoamericanos
James Blake Wiener (CC BY-NC-SA)

A obra consistia originalmente num poema único e longo. Sua divisão em capítulos separados ocorreu após a tradução para os idiomas europeus. A intenção do autor original parece ter sido preservar a experiência de ouvir a recitação do poema e, através das artes mágicas do contador de histórias, dar vida aos eventos pessoalmente, à medida que o relato se desenrola. Esta prática está de acordo com as tradições orais de outras culturas antigas, tais como as da Grécia e Mesopotâmia, entre outras. Christenson observa:

O Popol Vuh está escrito no presente contínuo, sugerindo que o narrador vê diante de si o que escreve. Isso é consistente com a maneira pela qual as histórias são contadas em domicílios quiché contemporâneos. O contador de histórias convida o ouvinte a imaginar o ambiente do conto, e quase sempre relata a história como se estivesse acontecendo diante deles, mesmo se tivesse ocorrido no passado distante ou mítico (12).

Os quatro livros contam a história da criação da vida, as tentativas dos deuses de criar os seres humanos, o triunfo sobre a morte dos heróis gêmeos celestiais, o sucesso na criação dos humanos pelos deuses e as genealogias do povo de Quiché. Robert J. Sharer, da Universidade da Pensilvânia, afirma que “O mundo dos antigos maias era governado por uma ordem cosmológica que transcendia nossa distinção entre os reinos natural e sobrenatural. Todas as coisas, animadas ou inanimadas, estavam imbuídas de um poder invisível” (Stuart, 47) e o Popol Vuh desenvolve completamente esta visão.

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Livro I

O primeiro livro começa:

Este é o Relato, aqui está: Tudo ainda em suspenso, ainda silente. Tudo sereno, ainda em sossego. Tudo em silêncio, vazio também o ventre do céu. [...] Ainda não existia nenhum homem, bicho, pássaro, peixe, caranguejo, árvore, pedra, gruta, desfiladeiro, prado ou floresta. Só existia o céu; a face da terra não se manifestara ainda. Sob todo o céu, só havia o mar liso - não havia nada reunido.

Deste espaço vazio e silencioso, os deuses criaram o mundo e todas as coisas vivas, com exceção dos humanos. Os animais não podiam falar ou venerar seus deuses, porém, e então os deuses declararam: “precisamos fazer um provedor e nutridor. Como poderemos ser invocados e lembrados na face da terra?” Eles tentaram criar seres humanos, mas falharam, pois as criaturas “não tinham coração” e não se lembravam de seus criadores. Eles tentaram novamente, desta vez fazendo pessoas de madeira, mas isso também falhou e as criaturas foram destruídas por um grande dilúvio. Aquelas que se salvaram da enchente acabaram sendo atacadas por seus cães, pelas suas panelas de cozinha e pedras de moer tortilhas, por todas as coisas da terra que haviam maltratado e abusado. Os deuses, finalmente, são deixados sozinhos para glorificar a si mesmos; isso leva à ascensão da divindade Sete Arara, que se considera importante demais.

Livro II

Na abertura do segundo livro, dois garotos celestiais, chamados Hunahpu e Xbalanque (os Heróis Gêmeos) planejam a destruição de Sete Arara e seus dois filhos, Zipacna e Cabracan. Ainda não há humanos na terra e os os garotos estão descontentes que Sete Arara possa governar sobre tudo, sem ninguém para desafiá-lo ou apontar suas falhas. Parece que, sem seres humanos para dar aos deuses a importância devida, qualquer deus podia alegar a importância que preferisse. Sete Arara recusava-se a reconhecer os outros deuses ou suas obras e assim, através de uma série de truques e artimanhas inteligentes, os Heróis Gêmeos o matam, assim como seus filhos, desta forma restaurando a ordem e o equilíbrio do mundo.

Ball Court, Copan
Quadra de Jogo de Bola, Copán
Adalberto Hernandez Vega (CC BY)

Livro III

O terceiro livro narra as aventuras do pai e do tio dos Heróis Gêmeos, Hun-Hunahpu and Vucub Hunahpu, filhos de Xpiyacoc e Xmucane, os primeiros adivinhadores que tentaram criar humanos. Eles são, portanto, relacionados à criação e adivinhação. Enganados pelos Senhores da Morte para aceitar um convite para um jogo de bola em Xibalba, os dois são assassinados e a cabeça de Huh-Hunahpu é colocada numa cabaceira no submundo. A princesa virgem Xquiq (também conhecida como Deusa da Lua Sangrenta) fica atraída pela cabeça, mesmo que tenha sido advertida para não se aproximar dela. Quando ela chega perto da árvore, a cabeça cuspe na mão da moça, engravidando-a. A princesa então deixa o submundo e vai para o reino superior da terra, para viver com sua nova sogra, Xumucane. Por causa da tragédia que sobreveio aos filhos, Xumucane desconfia de Xquiq e cria várias tarefas para que prove seu valor. Quando os gêmeos nascem, ela também desconfia deles, que precisam mostrar que são valorosos. Xumucane esconde todos os equipamentos do jogo de bola dos filhos, porque não quer que seus netos saibam o que aconteceu com seu pai e tio e tentem vingá-los. Os gêmeos encontram os equipamentos, porém, e desafiam os Senhores da Morte para uma nova partida. Após numerosas aventuras no submundo, nas quais eles enganam os Senhores de Xibalba repetidamente, os Heróis Gêmeos os destroem e sobem pela Árvore do Mundo para o céu, onde se tornam o céu e a lua.

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Livro IV

No Livro IV os seres humanos são criados com sucesso a partir do milho. Inicialmente, os deuses fazem quatro homens que:

[...] eram boas pessoas, bonitas, com aparência de seres do gênero masculino. Pensamentos passaram a existir e eles olharam; sua visão veio toda de uma vez. Perfeitamente eles viram, perfeitamente eles sabiam tudo abaixo do céu, em torno do céu, na terra, tudo podia ser visto sem obstruções [...] À medida que eles observavam, seu conhecimento tornou-se cada vez mais intenso. Seu olhar passou através de árvores, rochas, lagos, mares, montanhas, planícies.

Isso perturbou os deuses, que compreenderam que os humanos não deveriam ter os mesmos dons que seus criadores. Eles conferenciaram entre si, dizendo “Não são eles meramente ‘obras’ ou ‘projetos’ em seus próprios nomes? Ainda assim eles se tornarão tão grandes quando os deuses a não ser que procriem, proliferem na semeadura, no amanhecer, a não ser que seu número aumente. Que seja desta forma: agora nós os rebaixaremos apenas um pouco.” Os deuses introduzem a mortalidade para a humanidade e:

[...] mudaram a natureza de suas obras, seus projetos, foi suficiente que os olhos fossem borrados. Foram cegados como a face de um espelho quando se respira sobre ela. Sua visão vacilava. Agora apenas de muito perto eles podiam ver o que havia ao redor com qualquer tipo de clareza. E assim perderam-se os meios de compreensão, junto com os meios de se conhecer tudo ao seu redor.

Os deuses então forneceram aos homens as esposas e "imediatamente eles estavam felizes em seus corações novamente, por causa de suas esposas", e eles esqueceram que já tinham conhecido tudo ao seu redor e assemelhavam-se aos deuses. Os homens e mulheres contentaram-se em ter filhos e cultivar a terra, apreciando os dons que os deuses haviam lhes concedido. O livro conclui com a história da migração dos quiché e sua genealogia. Incluída nesta seção está a introdução do deus Gucumatz, a serpente emplumada, conhecido pelos maias do Yucatán como Kukulcan e pelos astecas como Quetzalcoatl. O livro IV termina com as linhas seguintes:

Aqui está, pois, a essência dos quiché, porque já não há onde vê-la. Há o livro original e os escritos antigos pertencentes aos senhores, agora perdidos, mas, mesmo assim, tudo se completou com referência a Quiché, que agora se chama Santa Cruz.

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Bibliografia

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Ricardo é um jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Escritor freelance e ex-professor de filosofia em tempo parcial no Marist College, em Nova York, Joshua J. Mark viveu na Grécia e na Alemanha e viajou pelo Egito. Ele ensinou história, redação, literatura e filosofia em nível universitário.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2014, Março 21). Popol Vuh [Popol Vuh]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-11164/popol-vuh/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Popol Vuh." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação Março 21, 2014. https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-11164/popol-vuh/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Popol Vuh." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 21 Mar 2014. Web. 27 Abr 2024.