O julgamento e execução do Rei Luís XVI da França (r. 1774-1792) foi um dos eventos mais importantes da Revolução Francesa (1789-99). Em dezembro de 1792, o antigo rei, agora chamado de Cidadão Louis Capet, foi julgado e considerado culpado de diversos crimes que equivaliam a alta traição, e ele foi sentenciado à morte na guilhotina.
A execução de Luís iria afetar profundamente o curso da história europeia, marcando um ponto sem volta para os revolucionários da França. Primeira e única execução de um monarca francês pelos seus súditos, a morte de Luís XVI marcou o fim do Ancien Régime e encerrou um milênio de monarquia francesa ininterrupta. Também expandiu fortemente as Guerras Revolucionárias Francesas (1792-1802), levou ao Reinado do Terror, e iniciou o curto período da Primeira República Francesa (1792-1804).
Prisioneiros Reais
Em setembro de 1792, a Revolução Francesa tinha transformado completamente a sociedade do país; o regime feudal havia sido abolido, os poderes da Igreja e da aristocracia cerceados, e os direitos naturais do homem proclamados. A Constituição de 1791 tinha sido elaborada para uma nova sociedade igualitária, em que não haviam patrícios ou plebeus, tampouco senhores ou escravos, e em 21 de setembro de 1792, a monarquia foi abolida e a República Francesa, proclamada.
A esta altura, Luís XVI já havia sido deposto e era mantido prisioneiro pelo governo da cidade de Paris, a Comuna Insurrecional, na fortaleza do Templo. Desde 1789, várias tentativas de reconciliá-lo com a Revolução tinham falhado, culminando no sangrento Ataque ao Palácio das Tulherias em 10 de agosto de 1792. O ponto culminante foi o aparente desprezo do rei pela defesa da cidade frente à invasão de um exército prussiano, levando cidadãos frustrados, assustados, e revoltados a invadir seu palácio. Embora Luís tenha deixado uma nota ordenando a rendição à sua Guarda Suíça, eles a ignoraram e abriram fogo contra os insurrecionalistas, e 800 pessoas morreram após a batalha que se seguiu. Muitos culparam o rei, que foi preso, e a monarquia milenar francesa estava enfim morta.
Os prisioneiros reais do Templo incluíam o próprio Luís XVI, sua esposa Maria Antonieta, seus dois filhos, e sua irmã Madame Isabel. Foi permitido a eles ter certos luxos, como uma equipe de 13 funcionários, um criado, refeições preparadas por profissionais, e tantos livros quanto o rei desejasse. Contudo, a Comuna não hesitou em lembrar a família real que eles não eram mais realeza; os visitantes não retiravam seus chapéus na presença do rei, tampouco levantavam de seus assentos para se curvar diante dele. Os prisioneiros recebiam abuso verbal constante de seus guardas, que se divertiam fazendo grafite retratando Luís pendurado em uma forca.
Luís era acompanhado pela Guarda Nacional em todo lugar que ia, até durante suas sessões solitárias de leitura. Os guardas confiscaram os conjuntos de costura de Maria Antonieta, suspeitando de que ela estivesse confeccionando mensagens secretas. Mesmo assim, Luís e sua família tentavam viver da maneira mais normal que podiam. Faziam suas refeições juntos, e embora fossem obrigados a conversar de forma alta e clara em francês, Luís foi autorizado a ensinar geografia ao seu filho, Luís Carlos, e os dois eram frequentemente vistos juntos colorindo mapas. Por volta de meio-dia, a família podia acessar os jardins, onde eles iriam arremessar bolas ou jogar peteca, e à tarde, Luís lia histórias Romanas para seus filhos. Mas enquanto a família se acostumava com suas novas vidas, um novo corpo legislativo se reunia em Paris, com um assunto importante a decidir: o que deveria ser feito com o antigo rei da França?
Condenando um Rei
No começo de setembro, 749 representantes foram eleitos para a nova Convenção Nacional. Assim como a Assembleia Legislativa que a precedeu, a Convenção era majoritariamente jovem, com dois terços de seus membros tendo menos de 45 anos, e sendo em sua maioria advogados. Muitos desses novos deputados já eram líderes revolucionários de destaque, como Maximilien de Robespierre, Jacques-Pierre Brissot, e Georges Danton. Outros, como o jovem de 25 anos Louis-Antoine Saint-Just, eram novatos, e pela primeira vez, um estrangeiro foi eleito; o inglês radical Thomas Paine conseguiu uma cadeira, apesar de seu francês ruim.
A Convenção começou sua gestão com um estrondo, proclamando uma República no dia 21 de setembro de 1792. A monarquia foi oficialmente abolida, legitimando as ações tomadas em 10 de agosto. Contudo, o destino do rei permaneceu como uma questão complicada, que iria atrair a atenção da Convenção pelo resto do outono. A facção Girondina, liderada por Brissot, propôs que nada fosse feito; o rei seria de maior valor como prisioneiro e refém, podendo ser utilizado como peça política conforme a necessidade. Os opositores dos Girondinos, por outro lado, desprezaram essa proposta, demandando uma maior punição para Luís; os maiores militantes dessa ideia eram uma subdivisão dos Jacobinos, que ficou conhecida como a Montanha, devido à sua tendência de se sentar no topo das arquibancadas nas reuniões da Convenção. Liderados por Robespierre, os Montanheses defendiam que Luís deveria ser morto.
À medida em que os Girondinos e os Montanheses discutiam, os outros representantes levantaram um debate sobre como um rei deveria ser julgado, ou se ele poderia de todo ser julgado. Charles Morisson, deputado do departamento da Vendéia, defendeu que Luís não poderia ser legitimamente julgado, visto que a Constituição de 1791 afirmava que a pessoa do rei era “inviolável e sagrada” (Scurr, 242). De acordo com o texto, a abdicação era uma punição suficiente para seus crimes. A lógica de Morisson foi desprezada por seus colegas, que argumentavam que o rei nunca tinha realmente aceito a constituição e não poderia ser protegido por ela. Surpreendentemente, os Montanheses concordaram com Morisson que não deveria haver julgamento, mas por razões muito diferentes.
O porta-voz da Montanha era o jovem Saint-Just. Com um estoicismo praticado remanescente de seu ídolo Robespierre, Saint-Just argumentou que o rei já havia sido considerado culpado, tanto pelo povo no dia 10 de agosto, quanto pelo simples fato de ter sido um monarca, visto que “ninguém pode reinar de maneira inocente” (Davidson, 138). Saint-Just declarou que o rei jamais havia sido um verdadeiro cidadão francês; como rei, ele se portava como estando acima da lei e nunca tinha participado do processo democrático. Por que ele deveria ser considerado um cidadão neste momento? Para Saint-Just, o rei estava fora do corpo político, não merecendo a proteção da lei francesa mais do que um prisioneiro de guerra estrangeiro. “Para mim,” Saint-Just concluiu, “eu não vejo nenhum meio termo: esse homem deve reinar ou morrer” (Scurr, 243).
O discurso eletrizante de Saint-Just não impressionou a ninguém tanto como a Robespierre; a amizade subsequente entre eles teria profundas consequências para a França. Enquanto isso, o líder Jacobino discursou concordando com o jovem deputado, dizendo que um julgamento deveria considerar a possibilidade da inocência de Luís XVI, algo que não poderia ser aceito. Se Luís pudesse ser considerado inocente, argumentou, a República teria sido edificada sob um falso pretexto; como ele colocou, “Luís deve morrer pois a nação deve viver” (Scurr, 245).
Apesar da retórica poderosa dos Montanheses, a Convenção era afinal uma assembleia de advogados, logo a intenção era que tudo fosse feito legalmente. Um julgamento seria então feito. Com essa decisão, dois comitês foram estabelecidos para investigar possíveis crimes que pudessem ser atribuídos ao rei.
Indiciamento
Em 20 de novembro, foi anunciado que um baú de ferro tinha sido descoberto em um compartimento oculto nos muros do Palácio das Tulherias. Dentro, estavam cartas e documentos que incriminavam o rei de comportamento anti-revolucionário e traidor. O mais chocante para a Convenção foram cartas que revelavam que o falecido líder revolucionário Honoré-Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau, estava trabalhando secretamente para o rei. Com a insistência de Robespierre, os restos mortais de Mirabeau foram retirados do Panteão francês e seu busto no Clube Jacobino foi quebrado em peças.
Embora a descoberta do baú tenha despertado um debate acalorado na Convenção sobre se os documentos tinham sido forjados, ela foi o suficiente para embasar procedimentos. Em nome do comitê criminal, Robert Lindet apresentou uma lista detalhando os crimes do rei desde o começo da Revolução. Esses crimes incluíam mas não eram limitados à preparação para usar de força militar contra Paris nos dias que antecederam a Invasão da Bastilha, e a conspirar para fugir da França e instigar uma contra-revolução na Fuga de Varennes; fazendo com que o sangue de franceses fosse derramado tanto no Massacre do Campo de Marte quanto na Insurreição de 10 de agosto. Com as acusações preparadas, a Convenção convocou Luís a comparecer diante deles para ser indiciado no dia 11 de dezembro.
Na manhã do indiciamento, o prefeito Chambon de Paris foi ao Templo buscar o rei, a quem se referiu como Louis Capet. Isso levou a uma explosão atípica do antigo monarca, que gritou: “Eu não sou Louis Capet! Meus ancestrais tinham este nome, mas eu nunca fui chamado desse jeito” (Schama, 658). Levado aos deputados, Luís teve que se manter de pé, até que o presidente da Convenção, Bertrand Barère, o convidou a se sentar. Nas três horas que se seguiram, Barère percorreu a lista de acusações, todas as quais Luís categoricamente negou, mesmo quando foram mostrados a ele documentos que claramente continham suas assinaturas. Ao longo de todo o processo, ele manteve um nível impressionante de calma, que somente se quebrou uma vez; quando acusado de “derramar sangue francês”, Luís ficou nervoso, enxugando lágrimas de seus olhos e esfregando sua testa. No geral, ele manteve seu argumento, sustentando que apenas havia feito o que acreditava ser correto. Após seu indiciamento, ele solicitou uma equipe de defesa, algo que a Convenção relutantemente aceitou. O julgamento foi adiado em dez dias, para dar tempo para a defesa de Luís se preparar.
Enquanto isso, Paris se alegrava com a notícia do julgamento. Um testemunho do julgamento e execução do rei Carlos I da Inglaterra (r. 1625-1649) tornou-se um sucesso de vendas nas livrarias, à medida que clubes políticos brindavam a morte iminente de um tirano. Contudo, mesmo que Paris estivesse sedenta pelo sangue real, isso não era o caso para toda a França. De fato, o julgamento do rei e sua possível execução perturbavam muitos no exército, bem como grande parte do interior do país. Em Rouen, uma revolta eclodiu em defesa do rei. Isso foi outro exemplo da divisão entre os cidadãos franceses que iria ajudar a desestabilizar a nação no ano do Terror que se seguiria.
O Julgamento
A equipe de Luís imediatamente começou a preparar sua defesa. Seu principal advogado era Lamoignon de Malesherbes, um político de 71 anos de idade que tinha servido duas vezes como ministro real; quando perguntado o que o havia feito lutar essa batalha que estava sendo perdida, Malesherbes retrucou: “Fui chamado duas vezes ao serviço dele que foi meu Mestre, quando o mundo inteiro cobiçou essa honra; e lhe devo o mesmo serviço agora, quando isso é reconhecido por muitos como algo perigoso” (Carlyle, 545). Os outros defensores de Luís incluíam mais um jurista renomado, François-Denis Tronchet, bem como o mais jovem e eloquente Romain Desèze.
Luís mantinha a última palavra sobre seus argumentos legais e aprovava as falas de todos os seus advogados. Ele se recusou a permiti-los afirmar que ele era ignorante da lei, e tampouco seguiria o exemplo de Carlos I e negaria a autoridade da Convenção. Ao invés disso, ele se basearia na Constituição de 1791, que determinava a inviolabilidade do monarca francês, tornando o julgamento ilegal. Embora Luís tenha dito a Malesherbes que uma vitória era possível no seu caso, ele aparentemente aceitou secretamente sua situação, passando o Natal revisando seus últimos desejos e seu testamento. Neles, ele escreveu ao seu filho que se ele um dia tivesse a desventura de se tornar rei, ele não deveria buscar vingança pela morte de seu pai, mas apenas a felicidade de seus súditos. Ele também escreveu à rainha, pedindo perdão por qualquer sofrimento que ele pudesse tê-la causado durante seu casamento. Em um último ato de rebeldia, ele assinou o testamento como “Rei Luís XVI da França e Navarra”, título que ele possuía no Ancien Régime.
Em 26 de dezembro, o cidadão Capet foi levado para a Convenção para ser julgado. Desèze, que não dormia havia quatro dias, apresentou os argumentos da defesa. Ele levantou o ponto de que, pela Constituição de 1791, o rei já havia pago pelos seus crimes com sua abdicação e não havia cometido nenhum crime depois de se tornar um cidadão. De acordo com Desèze, o rei sempre havia agido somente pelos interesses do seu povo, lembrando aos cidadãos presentes de que ele havia lhes “dado” a sua liberdade. No tópico do derramamento de sangue, Desèze afirmou que o rei nunca quis que isso acontecesse, no entanto “ele nunca se perdoaria por isso” (Schama, 660).
Após os argumentos de Desèze, três questões foram levantadas perante a Convenção:
- a questão da culpa,
- se Luís tinha o direito de recorrer,
- o sentenciamento.
Em 15 de janeiro de 1793, o veredito de culpado foi dado por 693 votos; embora alguns deputados tenham se abstido, nenhum voto pela inocência foi dado. A votação pelo recurso foi mais equilibrada, entretanto foi derrotada por 424 votos a 283. Com isso, restou apenas o sentenciamento. Uma solicitação feita pelos Girondinos para implementar uma maioria de dois terços para decidir o sentenciamento foi negada, visto que todas as outras decisões importantes precisaram apenas de uma maioria simples.
A votação para a sentença começou às 8 da noite do dia 16 de janeiro, e duraria por 13 horas. Um por um, os deputados se aproximaram da tribuna para declarar seu voto e justificá-lo. O salão estava cheio de espectadores, cativados pelo dramático evento. De todos os votos, talvez o mais surpreendente foi o de Philippe Egalité, primo do rei e antigo Duque de Orléans. Egalité votou pela execução, na base de que “aqueles que atacaram a soberania do povo merecem a morte” (Fraser, 398). O voto de Egalité foi visto como oportunista e desonroso mesmo por aqueles que apoiavam a execução de Luís, e foi o único voto que enfureceu visivelmente o antigo rei quando ele soube.
Ao final, venceu o voto pela execução. 361 deputados votaram incondicionalmente pela morte, 319 pelo aprisionamento seguido de banimento, e o resto por uma variação de ambos. Os exaustos advogados de Luís, que foram proibidos de se sentar durante toda a duração da votação, leram um discurso preparado pelo rei, no qual ele recusava aceitar um julgamento por crimes que não acreditava haver cometido. Malesherbes tentou um último apelo, mas estava tão dominado pela emoção que as palavras ficaram presas em sua garganta. “Cidadãos”, disse ele entre lágrimas, “tenho observações para fazer a vocês… terei a desventura de perdê-las se não me deixarem apresentá-las amanhã?” (Schama, 663). Ele de fato sofreria tal desventura. O caso estava decidido.
Execução
Nos dias que se passaram entre o sentenciamento e a execução, outros tentaram salvar Luís de seu destino. Thomas Paine sugeriu enviá-lo à Filadélfia, onde ele poderia ser reabilitado como um cidadão obediente. O Marquês de Condorcet proferiu um longo discurso sobre os males da pena capital. Os Girondinos tentaram passar uma moção adiando a sentença. Até o próprio Luís pediu mais tempo para resolver suas pendências. Nenhum desses apelos surtiu muito efeito, e Luís foi condenado a morrer no dia 21 de janeiro de 1793.
Na tarde de 20 de janeiro, Luís foi autorizado a ver sua família pela última vez. Descobriu-se que eles ainda não haviam sido informados por ninguém do seu destino. O criado real, Cléry, descreveu uma cena comovente em que os filhos de Luís se agarraram às suas pernas aos prantos, e o antigo rei choramingou ao segurá-los. Na hora de sua saída, Maria Antonieta o pediu chorando para que passasse lá novamente pela manhã. Luís concordou, embora isso fosse uma promessa que ele não poderia cumprir. Ele não veria sua família novamente.
No dia 21 de janeiro, Luís acordou às 5 da manhã para receber uma última comunhão de seu confidente escolhido, o padre Edgeworth de Firmont. Às 8, a Guarda Nacional veio buscá-lo, mas os guardas estavam claramente ansiosos devido ao peso de suas responsabilidades. Tomando o comando uma última vez, Luís bateu seu pé no chão e exclamou: “Partons!” (“Partamos!”). Ele foi então levado em uma carruagem, que demorou duas horas para chegar ao cadafalso devido à neblina de inverno, e passou por lojas interditadas e janelas tapadas, fechadas por ordem da Convenção. Temerosa de uma tentativa de resgate, a Convenção também ordenou que os portões da cidade fossem fechados. Soldados se enfileiraram nas ruas, e 1500 guardas nacionais acompanharam a carruagem. Dentro dela, Luís se ocupava lendo um livro de pregações.
Às 10 horas, a carruagem chegou ao cadafalso na Place de la Révolution. Luís foi levado aos degraus onde o carrasco, Charles-Henri Sanson o aguardava. Luís, que havia até agora mantido sua compostura, estava a ponto de resistir quando Sanson tentou amarrar suas mãos. Ele só foi acalmado pelas palavras de Edgeworth, que o lembrou do sofrimento de Jesus Cristo. Aceitando essa indignidade, seu cabelo foi raspado, e ele foi levado à guilhotina.
No cadafalso, ele tentou se dirigir aos 20.000 cidadãos reunidos na praça: “Morro inocente de todos os crimes dos quais fui acusado. Eu perdoo aqueles que me levaram à morte, e rezo para que o sangue que vocês estão prestes a derramar nunca seja demandado da França…” (Schama, 669). Ele tentou falar mais, porém um repentino soar de tambores sufocou suas palavras. Luís foi então amarrado a uma tábua e empurrado para debaixo da lâmina. Depois que ela foi solta, Sanson segurou a cabeça gotejante diante da multidão. Às 10:30, os portões da cidade foram abertos, os soldados dispersos, e a vida voltou ao normal.