A Vida no Ateliê de um Artista da Renascença

Artigo

Mark Cartwright
por , traduzido por Ellen Pastorino
publicado em 24 Setembro 2020
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Disponível noutras línguas: Inglês, holandês, francês, italiano, espanhol

A maioria das principais obras de arte renascentistas eram produzidas em grandes e movimentados ateliês, dirigidos por um mestre de renome e sua equipe de assistentes e aprendizes. Também foi produzida uma grande quantidade de arte mundana para satisfazer a demanda dos clientes com um orçamento mais modesto do que o possuído por governantes e papas. Os ateliês também foram campos de treinamento para jovens artistas que aprendiam seu ofício durante anos, começando com a cópia de esboços e terminando eventualmente com a produção de obras em seu próprio nome. Embora os ateliês muitas vezes tivessem um 'estilo' doméstico bem definido, eles também eram lugares onde as ideias eram experimentadas e as novas tendências podiam ser estudadas, discutidas e empregadas em obras de arte que variavam de afrescos maciços a figuras votivas.

Sculptor's Workshop by Nanni di Banco
Ateliê de Escultores por Nanni di Banco
Sp!ros (CC BY-NC)

O Estabelecimento dos Ateliês

As pessoas que produzem peças de arte e objetos decorativos, hoje chamados de "artistas", eram, durante a Renascença, chamados de "artesãos" e assim pertenciam à mesma categoria dos sapateiros, padeiros, carpinteiros e ferreiros. Assim como estes artesãos, os artistas tinham ateliês com equipamento especializado, materiais e o espaço que precisavam para seu trabalho. É verdade que à medida que a Renascença avançava, os artistas começaram a se distinguir de outros artesãos, pois havia um elemento intelectual evidente em seu trabalho - eles estudaram o passado e consideraram teorias como a perspectiva matemática, por exemplo. Até então, o título de 'artista' só era dado a alguém que tivesse estudado as sete artes liberais (retórica, gramática, dialética, geometria, aritmética, música e astronomia). Este desenvolvimento e elevação do artista de outros artesãos também indicava que a arte havia se tornado um elemento essencial e importante na forma como uma cidade ou estado via a si mesmo.

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QUEM QUER QUE FOSSE O CLIENTE, GERALMENTE ERA EXIGENTE & O TRABALHO DO ARTISTA RENASCENTISTA ERA PRODUZIR EXATAMENTE O QUE O CLIENTE QUERIA.

Durante a Renascença, muitos projetos cívicos bem como alguns privados, como os ciclos de afrescos, poderiam levar muitos anos para serem concluídos. Alguns projetos precisavam de grandes quantidades de materiais e uma equipe de artistas, geralmente trabalhando sob a supervisão do artista chefe ou de seu contramestre, para concluí-los em tempo hábil. Consequentemente, quando os artistas mestres eram comissionados para projetos específicos, eles recebiam com frequência um espaço dedicado para criar um ateliê caso não tivessem um ou se fosse mais conveniente trabalhar no local. Donatello (1386-1466), por exemplo, foi encarregado de criar esculturas para o exterior da catedral de Florença e foi-lhe dado espaço para seu ateliê em uma das capelas da catedral. A condução de um ateliê exigia todos os tipos de habilidades, além das artísticas. Um mestre tinha que ser perspicaz com contratos, administrar e treinar pessoal, avaliar a qualidade das matérias-primas, orçar suas finanças, investir qualquer lucro e, é claro, nunca deixar de produzir grandes obras de arte.

Alguns artistas bem sucedidos até tiveram ateliês funcionando em duas ou mais cidades ao mesmo tempo. Assim como hoje, uma carreira nas artes poderia ser precária e alguns artistas reduziram a despesa financeira e os riscos ao compartilhar um ateliê. Donatello e Michelozzo di Bartolomeo (1396-1472), por exemplo, compartilharam ateliês em Pisa e Florença, o que lhes permitiu economizar dinheiro ao compartilhar dois barcos e uma mula para o transporte de mármore necessária para seus trabalhos.

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Self-portrait by Baccio Bandinelli
Autorretrato por Baccio Bandinelli
Web Gallery of Art (Public Domain)

Os Clientes

Durante a Renascença, em geral, as obras de arte não eram produzidas primeiro e mais tarde vendidas, como geralmente ocorre hoje em dia, pelo contrário, os artistas eram encarregados de produzir peças específicas. As obras de arte eram caras e por isso os clientes de um ateliê eram tipicamente governantes, aristocratas (homens e mulheres), banqueiros, comerciantes bem-sucedidos, tabeliões, membros superiores do clero, de ordens religiosas, de autoridades cívicas e organizações como guildas. Possivelmente, membros mais humildes encomendavam trabalhos para ocasiões especiais, como um casamento ou quando se mudavam para uma casa nova. Outra demanda popular por obras de arte eram as ofertas votivas, ou seja, objetos como placas e figuras de relevo que os fiéis queriam deixar em sua igreja local para agradecer por ações prósperas em suas vidas. Estas ofertas votivas estavam entre as poucas obras que os ateliês produziam sem ter que identificar com antecedência um comprador específico, e por isso, estariam disponíveis "no balcão" para que o cliente pudesse escolher.

O cliente, não importava quem fosse, era frequentemente exigente, e o trabalho do artista era produzir exatamente o que o cliente queria. Isto não era um mero capricho dos mecenas, porque naquela época a arte não era para ser esteticamente agradável. Pelo contrário, as obras de arte tinham funções específicas como inspirar devoção, contar uma história bíblica, ou retratar a história e as habilidades de uma determinada cidade ou família dominante. Por esta razão, os artistas tinham que seguir certas convenções para que os espectadores pudessem facilmente reconhecer figuras religiosas, mitológicas e históricas.

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OS APRENDIZES NORMALMENTE, MAS NEM SEMPRE, SEGUIAM SEUS PAIS NA PROFISSÃO ARTÍSTICA, COMO ERA COMUM EM OUTROS OFÍCIOS.

Normalmente, os clientes não eram tímidos quando se tratava de estipular exatamente o que queriam ver no trabalho final. Os artistas que divergiram destas especificações corriam o risco de não ter seu trabalho aceito ou ser substituído (no caso de um afresco, por exemplo). Pechinchar sobre o projeto e os honorários dos artistas é o que fazia com que muitos projetos fossem atrasados, desde um túmulo para um papa até a estátua de um líder militar. Os contratos frequentemente estipulavam uma data precisa de conclusão, e isto poderia ser outra fonte de atrito entre mecena e artista. O contrato poderia incluir uma cláusula sobre a quantidade de material valioso - desde ouro até cores caras - utilizado na comissão. No caso de obras públicas, o trabalho finalizado poderia ser submetido a uma avaliação por uma organização de artistas independentes para garantir sua qualidade. No entanto, alguns artistas eram famosos o suficiente para pressionar por um controle completo de um determinado projeto, mesmo que às vezes houvesse um clamor dos tradicionalistas quando o trabalho fosse finalmente revelado ao público. Os afrescos da Capela Sistina de Michelangelo são um bom exemplo, tendo alguns clérigos protestado contra a quantidade de nudez em seu trabalho. O fato de que a destruição dos afrescos foi seriamente contemplada indica o quanto era perigoso para um artista romper com as convenções, mesmo um tão famoso como Michelangelo.

Baldassare Castiglione by Raphael
Baldassare Castiglione por Rafael
Elsa Lambert (Public Domain)

Havia uma grande rivalidade entre cidades italianas como Florença, Veneza, Mântua e Sena e, portanto, não era raro que governantes e autoridades civis tentassem roubar um artista de uma cidade e estabelecer um novo ateliê em outro lugar. Tais autoridades esperavam que a nova arte produzida aumentasse o prestígio de sua cidade e de si mesmos. Além disso, alguns artistas tinham tanta demanda que aceitavam mais comissões do que podiam lidar e assim as obras eram deixadas inacabadas ou tinham que ser completadas por um assistente. Leonardo da Vinci (1452-1519) era notório por não ter terminado os projetos, e os mecenas da arte até escreveram uns para os outros alertando sobre esta falha.

Os Aprendizes

Os ateliês não eram apenas locais onde a arte era produzida, mas eram escolas de treinamento para a próxima geração de artistas. Os aprendizes normalmente, mas nem sempre, seguiam seus pais na profissão artística, como era comum em outros ofícios. Outros rapazes que mostravam talento artístico eram enviados para o ateliê de um artista famoso. Lorenzo Ghiberti (1378-1455), o famoso escultor que trabalhou durante décadas nas portas do Batistério de Florença, tinha um grande ateliê nessa cidade. Muitos artistas estudaram sob a direção de Ghiberti ou trabalharam como seu assistente, notadamente o escultor Donatello e o pintor Paolo Uccello (1397-1475). Outro exemplo, foi o artista florentino Andrea del Verrocchio (1435-1488) que treinou Pietro Perugino (1450-1523), Sandro Botticelli (1445-1510) e Leonardo da Vinci. Perugino iria ele mesmo treinar Rafael (1483-1520) em seu ateliê em Perúgia. O mundo da arte renascentista era realmente muito pequeno e artistas famosos estavam certamente cientes do que seus rivais estavam produzindo, fosse na sala ao lado do ateliê ou em outra cidade.

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Os aprendizes eram quase todos meninos (ocasionalmente um artista ensinava sua própria filha), e poderiam ser admitidos já aos onze anos de idade ou no início da adolescência. O treinamento normalmente durava de três a cinco anos, mas poderia ser menor ou maior, dependendo da habilidade e do progresso do aprendiz. Eles recebiam comida, alojamento e roupas, e às vezes um pequeno salário. Começavam fazendo tarefas simples do trabalho necessário para o funcionamento diário do ateliê, depois passavam a fazer escovas de cabelo de javali, preparar colas e moer pigmentos em bacias de mármore. Em seguida, vinham tarefas tais como misturar gesso, fazer reboco e preparar telas.

The Florentine Academy by Baccio Bandinelli
A Academia Florentina por Baccio Bandinelli
Welcome Images (CC BY)

A habilidade artística propriamente dita começava com o desenho (usava-se carvão ou tinta); ao qual foi dado grande destaque no período renascentista. Os jovens em treinamento copiavam continuamente desenhos feitos por outros e depois passavam a criar novos desenhos a partir de moldes tridimensionais. A etapa final era desenhar modelos ao vivo, geralmente eram colegas aprendizes vestidos como pastores, anjos, nus ou usando roupas que permitissem ao artista aperfeiçoar sua representação das dobras de tecidos. Outra maneira de representar a realidade era o desenho de cadáveres e membros dissecados, que foram adquiridos de médicos locais e considerados uma maneira útil para pintores e escultores entenderem melhor a musculatura humana e assim a representarem com mais precisão em sua arte. Foram organizadas visitas por toda a cidade para esboçar edifícios, árvores e pássaros. Como Leonardo da Vinci uma vez recomendou, um artista que se preze deveria levar sempre consigo um caderno de esboços para estar pronto para captar um assunto novo e interessante.

Durante a Renascença, era comum que os aprendizes tivessem que aprender habilidades em diferentes meios, tais como afresco, pintura de painéis usando tintas de têmpera ou óleo, escultura em grande escala em pedra e metal, gravura, trabalho em mosaico e os segredos da ourivesaria. Os jovens artistas aprendiam habilidades práticas como fundir esculturas em metais como o bronze e como juntar essas peças. Eles aprendiam as técnicas de 'cinzelamento' (acabamento e polimento), dourar as obras acabadas, misturar cores e também estudaram técnicas como chiaroscuro (o uso contrastante de luz e sombra), sfumato (transição de cores mais claras para mais escuras) e como obter um senso de perspectiva em uma cena. Finalmente, e acima de tudo, um aprendiz aprenderia a reproduzir os distintos métodos artísticos do mestre do ateliê, o "estilo da casa”.

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Os Assistentes

Um aprendiz, tendo adquirido todas as habilidades acima, se formaria então para se tornar um assistente. Agora ele receberia um salário completo e poderia trabalhar em nome do artista chefe do ateliê que então poderia assinar seu próprio nome para a obra de arte acabada (embora alguns contratos estipulassem que elementos importantes de uma peça tinham que ser criados pelo próprio mestre). Um assistente talentoso seria confiável para preencher partes menos importantes de uma obra que o mestre estivesse criando, por exemplo, as mãos de uma figura, uma cena de fundo ou aplicando áreas de folha de ouro. Pode-se imaginar que assistentes menos talentosos fossem encarregados de tarefas ainda mais simples como acrescentar inscrições e etiquetas a obras de arte, uma prática bastante comum no período da Renascença.

Renaissance Sculptor's Workshop Relief
Relevo do Ateliê dos Escultores Renascentistas
Sp!ros (CC BY-NC)

Um assistente também poderia se juntar a uma guilda de sua cidade e assim eles poderiam então produzir obras por conta própria, mesmo que ainda pudessem permanecer no ateliê em vez de montar seu próprio, como foi o caso de Leonardo da Vinci no início de sua carreira. Se eles quisessem estabelecer seu próprio ateliê, teriam primeiro que apresentar uma "obra-prima" para a aprovação de sua guilda local, que então lhes daria o direito de fazê-lo (mediante o pagamento de uma taxa). Outro grupo dentro da equipe do ateliê, raramente mencionado, mas ocasionalmente documentado como existente, eram escravos. Ao contrário de um aprendiz ou assistente, eles não recebiam salário, mas um escravo podia, além de fazer tarefas óbvias como buscar, carregar e limpar, ser treinado em artes específicas e produzir trabalhos próprios.

Além da produção de objetos físicos, ideias eram estudadas e discutidas no ateliê entre o mestre e seus assistentes. Muitos artistas notáveis montaram suas próprias coleções de antiguidades ou portfólios de desenhos de arte antiga para que o estudo destes pudesse ajudar o ateliê a reproduzir corretamente os detalhes anatômicos, as proporções ou os temas clássicos. Havia, também, textos discutindo arte e técnicas. Leon Battista Alberti (1404-1472) escreveu um desses tratados influentes, De pictura (Sobre Pintura) em 1435. O mestre também poderia ter contatos com outros artistas em outras cidades ou no exterior, permitindo que ideias e tendências fossem transmitidas aos futuros artistas. Como mencionado, estes estudos teóricos foram um elemento essencial na progressão dos artistas em direção a um status mais intelectual e elevado na sociedade renascentista.

Produção em Massa & Falsificações

Apesar de toda essa atenção à aprendizagem e à teoria artística, muitos ateliês tornaram-se fábricas de arte e a maior parte de sua produção não foram as obras-primas que vemos hoje em museus no mundo todo, mas sim peças mais mundanas destinadas à decoração de igrejas menores e casas menos suntuosas. O ateliê de Perugino, por exemplo, foi caracterizado por produzir infinitas peças de altares cujas figuras combinavam poses, cabeças e membros retirados de um catálogo padrão de desenhos. Estas obras eram feitas à mão e individualizadas por meio da combinação única de elementos padrão, mas elas constituíam a arte da época produzida em massa e criticada como tal pelos amantes de arte mais fina. Foi nestas obras mais humildes que a maioria dos aprendizes teriam aprendido seu ofício.

Battle of the Sea Gods by Mantegna
Batalha dos Deuses do Mar por Mantegna
zeno.org (Public Domain)

Outro método para aumentar a renda e difundir a reputação do ateliê era produzir gravuras em chapa de cobre. A partir de 1470, estas aumentaram em popularidade e não apenas permitiram que pessoas de meios modestos possuíssem uma peça, mas também contribuíram para a disseminação de ideias artísticas por toda a Europa. Assim como outros artistas, Albrecht Dürer (1471-1528) compilou portfólios de gravuras e desenhos de obras interessantes de outros artistas. O nível de habilidade empregada para produzir gravuras poderia ser muito alto, e as gravuras de alta qualidade começaram até a ser coletadas por especialistas.

Por fim, uma linha paralela lucrativa - ou para alguns ateliês mais duvidosos muito mais do que isso - era a produção de antiguidades falsas. A demanda por peças egípcias, etruscas, gregas e romanas foi tal que alguns ateliês produziram versões modernas e as transmitiram como obras antigas, às vezes até encenando uma "descoberta" arqueológica em um local de aparência semelhante. Como alternativa, novas inscrições foram acrescentadas às peças antigas genuínas para torná-las mais vendáveis. Pela mesma razão, os ateliês frequentemente acrescentavam membros e narizes ausentes às estátuas antigas ou remodelavam peças mais antigas, desfocando ainda mais as linhas entre a arte antiga e a arte nova, uma prática que tem desafiado os historiadores de arte desde então.

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Sobre o tradutor

Ellen Pastorino
Ellen Pastorino é estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Sobre o autor

Mark Cartwright
Mark é autor, pesquisador, historiador e editor em tempo integral. Seus principais interesses incluem arte, arquitetura e descobrir as ideias que todas as civilizações compartilham. Ele possui mestrado em Filosofia Política e é diretor editorial da WHE.

Citar este trabalho

Estilo APA

Cartwright, M. (2020, Setembro 24). A Vida no Ateliê de um Artista da Renascença [Life in a Renaissance Artist's Workshop]. (E. Pastorino, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1611/a-vida-no-atelie-de-um-artista-da-renascenca/

Estilo Chicago

Cartwright, Mark. "A Vida no Ateliê de um Artista da Renascença." Traduzido por Ellen Pastorino. World History Encyclopedia. Última modificação Setembro 24, 2020. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1611/a-vida-no-atelie-de-um-artista-da-renascenca/.

Estilo MLA

Cartwright, Mark. "A Vida no Ateliê de um Artista da Renascença." Traduzido por Ellen Pastorino. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 24 Set 2020. Web. 19 Abr 2024.