Peregrinação da Graça

Definição

Mark Cartwright
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 11 maio 2020
Disponível noutras línguas: Inglês, francês, espanhol
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Banner of the Holy Wounds (by Thomas Gun/Diego Sanguinetti, Public Domain)
Bandeira das Chagas Sagradas
Thomas Gun/Diego Sanguinetti (Public Domain)

A Peregrinação da Graça é o nome coletivo de uma série de rebeliões da Inglaterra setentrional, inicialmente em Lincolnshire e depois em Yorkshire e outros locais entre Outubro e Dezembro de 1536. Nobres, clérigos, monges e plebeus uniram-se na oposição às decisões de Henrique VIII da Inglaterra (r. 1509-1547) de separar a Igreja da Inglaterra de Roma e a política de fechamento de monastérios e confisco de suas propriedades, conhecida como a Dissolução dos Monastérios (Mosteiros). Outras queixas incluíam o temor de novos impostos, o confisco de propriedades da Igreja e a falta de representação politica do Norte da Inglaterra. A Peregrinação da Graça, assim denominada porque seus participantes consideravam-se "peregrinos", não ameaçou Londres, mas foi a maior insurreição do período Tudor (1485-1603). Os 40.000 manifestantes foram dispersados pela ameaça do uso da força e falsas promessas de perdão e reformas. Por fim, muitos de seus líderes, incluindo o advogado Robert Aske e Lorde Darcy, foram executados como traidores e Henrique prosseguiu em ritmo acelerado com a Reforma na Inglaterra.

A `Grande Questão' de Henrique VIII

Henrique VIII tinha um problema. Ele queria se divorciar de sua primeira esposa, Catarina de Aragão, para que pudesse desposar Ana Bolena (1501-1536), mais jovem e bela e que poderia lhe dar o que tanto desejava: um herdeiro masculino. O problema, que o monarca chamou sua "Grande Questão", era que a Igreja Católica não permitia o divórcio. Mesmo após muitas negociações diplomáticas, o Papa recusou-se a conceder a anulação do casamento de Henrique. O rei, auxiliado por seu chanceler, Thomas Cromwell (c. 1485-1540), decidiu então que ele se tornaria o chefe da Igreja da Inglaterra e, assim, poderia conceder a si mesmo o divórcio. Em consequência, Thomas Cranmer, o Arcebispo de Canterbury (Cantuária) anulou formalmente o primeiro casamento de Henrique em Maio de 1533, o que significava que o rei poderia se casar novamente (o que já havia feito, em segredo, alguns meses antes). Houve uma consequência adicional: a filha de Henrique com Catarina, a princesa Maria (n. Fev. 1516), foi declarada ilegítima e, por conseguinte, deserdada. Henrique acabou sendo excomungado pelo Papa por suas graves ações, mas isso seria apenas o início.

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O primeiro distúrbio, a Insurreição de Lincolnshire, começou em Louth no mês de Outubro de 1536, quando uma procissão comum da igreja transformou-se numa enorme marcha de protesto.

O Ato de Supremacia de 28 de Novembro de 1534 formalizou a condição do rei como Chefe da Igreja da Inglaterra, o que significava que Henrique, e todos os monarcas ingleses subsequentes, tinham somente uma autoridade superior: o próprio Deus. A próxima cena deste importante drama ocorreu em 1536, quando Henrique apresentou ao Parlamento uma lei que abolia todos os monastérios do reino, a Dissolução dos Monastérios. A lei foi aprovada e as propriedades dos monastérios começaram a ser redistribuídas para a Coroa e para os partidários de Henrique. Os abades de Glastonbury, Colchester, Reading e Woburn foram enforcados. Assim começou a Reforma Inglesa, que veria o catolicismo dar lugar ao protestantismo na Inglaterra. Em seguida, Cromwell divulgou As Injunções em Agosto de 1536, uma série de recomendações sobre o que o clero deveria ensinar às suas congregações, como por exemplo melhores explanações sobre os Dez Mandamentos e os Sete Pecados Capitais.

Henry VIII by Holbein
Henrique VIII por Hans Holbein
Hans Holbein (Public Domain)

As Causas da Rebelião

Henrique VIII estava provavelmente muito satisfeito por sua hábil manobra de se sobrepor à autoridade papal, e vários de seus nobres estavam igualmente contentes em obter seu quinhão de terras e riquezas da Igreja. Além disso, plebeus também estavam felizes em ver pelas costas aqueles padres e monges rapaces e corruptos que haviam arruinado seus vilarejos. Entretanto, os monastérios, em particular, haviam sido uma parte integral das comunidades locais há séculos, dando esmolas para os menos favorecidos e educação para as crianças pobres; criando empregos e ministrando orientação espiritual. Portanto, havia por certo um grande número de pessoas que não apreciavam a abolição de monastérios e os planos de fechar muitos outros. Este sentimento era especialmente forte no Norte da Inglaterra, onde havia uma elevada concentração destas instituições. Entre os primeiros e mais conhecidos críticos do rei estava o respeitado Sir Thomas More (1478-1535), ex-chanceler de Henrique VIII, que tinha discordado tanto do divórcio real quanto do Ato de Supremacia. Ele foi executado por suas crenças em Julho de 1535, mas ainda havia várias pessoas com pensamento semelhante para se lidar, entre os quais estavam os fundadores da Peregrinação da Graça, a mais séria rebelião na Inglaterra desde a famosa Revolta dos Camponeses de 1381.

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O movimento de protesto compilou uma lista de demandas pesadas para o rei, na esperança de reverter as preocupantes mudanças no tradicional estilo de vida das paróquias. Os principais objetivos da Peregrinação da Graça eram:

  • restaurar relações entre o Papado e a Inglaterra.
  • restaurar os monastérios e prevenir futuros fechamentos.
  • restaurar a Princesa Maria como herdeira do rei.
  • eliminar plebeus do círculo de ministros do Rei (especialmente Cromwell).
  • remover dois dos principais arquitetos da Reforma: o Arcebispo de Canterbury (Cantuária), Thomas Cranmer e Hugh Latimer, Bispo de Worcester.
  • revogar o Estatuto de Usos, de 1536, um imposto sobre terras herdadas.
  • garantir melhor representação política para os condados setentrionais.

Os rebeldes, que chamavam a si mesmos de "peregrinos", não queriam substituir o rei, mas o consideravam mal orientado por conselheiros corruptos, em sua maior parte novos ricos ou nobres sulistas ricos ansiosos apenas em pilhar o Norte da Inglaterra para ganhos imediatos. Também contribuiu para a volátil situação o fato de que 1535 e 1536 as colheitas tivessem sido pobres; os aluguéis aumentavam constantemente; e a política de cercamento de terras - a tomada de terras públicas de caça e pesca para uso privado dos ricos - ainda estava em vigor.

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Thomas Cromwell by Hans Holbein the Younger
Thomas Cromwell por Hans Holbein, o Jovem
Hans Holbein the Younger (Public Domain)

As Revoltas em Lincoln e York

O primeiro problema, a Revolta de Lincolnshire, começou na cidade de Louth em Outubro de 1536, quando uma procissão religiosa comum transformou-se numa enorme marcha de protesto. Muitos populares juntaram-se ao movimento após rumores persistentes que se espalharam pelo Norte da Inglaterra, segundo os quais, após o fechamento dos monastérios, as igrejas paroquiais seriam as próximas na lista do rei. Havia o temor de que o rei poderia, no mínimo, pilhar os objetos valiosos das igrejas, tais como cruzes de ouro. Os mercadores, além disso, temiam que as feiras locais que celebravam dias santos poderiam ser reprimidas. Outros rumores davam conta de que batismos, casamentos e sepultamentos seriam alvo de um novo imposto. Os comissários do governo já tinham visitado o norte para avaliar o que estava disponível para confisco e se as injunções estavam sendo aplicadas.

Os rebeldes começaram por reabrir alguns dos monastérios fechados. Foi uma ação que mereceu aplausos de muitos plebeus, que recebiam trabalho e caridade destas instituições. Henrique respondeu enviando um exército para lidar com os manifestantes em Lincoln, que até o dia 18 de Outubro foram devidamente dispersados. Entretanto, as notícias do protesto se espalharam e ele se tornou ainda mais sério em cidades como York e Pontefract, onde o castelo local foi tomado. Os manifestantes agora se reuniam sob sua bandeira, intitulada "Cinco Chagas de Cristo" e chamavam a si mesmos de "Peregrinação da Graça para a Comunidade". Os membros faziam o seguinte juramento de lealdade à causa:

Levar diante de si a cruz de Cristo e a fé no coração para a restituição da sua igreja e a eliminação das opiniões heréticas. (Miller, 105-6)

O líder deste grupo era o advogado de Yorkshire Robert Aske (c. 1500-1537). Tanto York quanto Pontefract foram tomadas e Aske instituiu um conselho que criou a lista de demandas mencionada acima, e que ficou conhecida como os Artigos de Pontefract. Aske tinha o apoio da pequena nobreza, mas também conseguiu persuadir figuras como Lorde Darcy (1467-1537) a se juntar à causa, e foi ele que entregou o Castelo de Pontefract aos rebeldes. Mais tarde, Darcy alegou que ele queria se infiltrar entre os manifestantes para melhor servir aos interesses do rei. Outras famílias nobres que simpatizavam com a revolta eram os Nevilles, Dacres e Percys. Um fator que motivava a pequena nobreza local era ver o fim do novo Estatuto de Usos, legislação que taxava as terras concedidas por herança. Também havia apoio material de figuras como Eustace Chapuys (c. 1490-1556), embaixador imperial na Inglaterra de Carlos V, o Imperador do Sacro Império Romano. (r. 1519-1556). Agora com um número ainda maior de participantes, organizados em unidades lideradas por capitães; com o envolvimento tanto de nobres quanto de plebeus; e com insurreições chegando em Lancashire e Cumbria, o movimento como um todo havia se tornado uma espécie de cruzada bastante perigosa para Henrique VIII.

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Ruins of Whitby Abbey
Ruínas da Abadia Whitby
Afshin Darian (CC BY)

Um Acordo Amigável

O rei respondeu à altura, enviando um segundo exército ao norte, desta vez reunindo 8.000 homens liderados por Thomas Howard, o Duque de Norfolk. O duque, um católico fiel e rival de Thomas Cromwell, foi uma escolha inteligente de Henrique. Para garantia adicional de um resultado favorável, o rei também enviou uma frota de dez navios para o norte da Inglaterra, como apoio. Mais importante, os grandes condes do norte de Northumberland, Westmorland, Cumberland, Derby e Shrewsbury permaneceram leais ao rei, mesmo que alguns inicialmente tenham hesitado.

Norfolk encontrou-se com os manifestantes quando estes se dirigiam para Doncaster. Em 6 de Dezembro, receoso do grande número de rebeldes que iria confrontar - talvez cerca de 40.000 homens, muitos dos quais armados - o duque ofereceu uma anistia geral e a criação de um novo e ampliado Conselho do Norte, com sede em York, para apresentação de suas queixas. Até que este parlamento estivesse em sessão, o fechamento de monastérios e o confisco de bens seria interrompido. Que a coisa toda era meramente uma tática para debelar a rebelião fica claro numa carta de Norfolk para Henrique, na qual o duque afirma: 'Suplico que você compreenda que qualquer coisa que eu prometa aos rebeldes, certamente não irei cumprir' (Miller, 105). Ainda assim, os manifestantes acharam que tinham obtido concessões significativas, baixaram suas armas e se dispersaram em 8 de Dezembro. Foi um lance acertado, já que transpirou mais tarde que o rei, particularmente indiferente, tinha sido dissuadido pelo seu próprio conselho a recuar da execução imediata dos líderes da rebelião.

O Ajuste de Contas

Mesmo que de forma mais cautelosa, Henrique ainda estava determinado continuar com suas reformas religiosas e, para prevenir futuros distúrbios, ele decidiu que o abade e os monges de Sawley fossem aprisionados e enforcados, pois acreditava que teriam sido os responsáveis por provocar o problema inicial. O rei polidamente recebeu Aske na corte, mas, na verdade, como um verdadeiro monarca medieval que ainda era em muitos aspectos, Henrique estava internamente indignado que seus súditos sequer considerassem questionar suas decisões políticas, sejam elas quais fossem.

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Fatidicamente, uma nova rebelião estourou em Janeiro de 1537, também em Yorkshire. Henrique, cada vez mais receoso com a frequência das insurreições, agiu de forma brutal em resposta à terceira demonstração de descontentamento e, em seguida, decidiu fazer dos líderes da Peregrinação da Graça um exemplo, incluindo Aske, Lorde Darcy, abades de Whalley, Kirkstead e Jervaux, o ex-abade da Abadia Fountain e vários membros proeminentes das famílias Percy e Neville. Em consequência, 178 pessoas foram presas, receberam um arremedo de julgamento e acabaram executadas ao longo de Junho de 1537. A cabeça de Darcy foi exibida na ponte de Londres, espetada numa lança, e o corpo de Aske e vários outros rebeldes foram pendurados por correntes nos muros do Castelo de York, como um sombrio alerta à população. Enquanto isso, o Conselho Privado do Rei reduziu o cercamento ilegal de terras e o Conselho do Norte foi reformulado, o que não somente deu aos habitantes dos condados setentrionais o sentimento de uma representação política mais próxima mas também permitiu a Henrique manter uma vigilância mais estreita naquela parte do reino, evitando que outras rebeliões ocorressem e prejudicassem seu reinado.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Mark Cartwright
Mark é autor em tempo integral, pesquisador, historiador e editor. Seus principais interesses incluem arte, arquitetura e descobrir as ideias que todas as civilizações compartilham. Ele possui mestrado em Filosofia Política e é diretor editorial da WHE.

Citar este trabalho

Estilo APA

Cartwright, M. (2020, maio 11). Peregrinação da Graça [Pilgrimage of Grace]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-18928/peregrinacao-da-graca/

Estilo Chicago

Cartwright, Mark. "Peregrinação da Graça." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação maio 11, 2020. https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-18928/peregrinacao-da-graca/.

Estilo MLA

Cartwright, Mark. "Peregrinação da Graça." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 11 mai 2020. Web. 05 out 2024.