Cerveja

Definição

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 17 Abril 2018
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Disponível noutras línguas: Inglês, francês, grego, espanhol, Turco
Egyptian Brewery (by The Trustees of the British Museum, Copyright)
Cervejaria Egípcia
The Trustees of the British Museum (Copyright)

A cerveja é uma das mais antigas bebidas alcoólicas consumidas por seres humanos. Mesmo uma pesquisa superficial da história deixa claro que, após cuidar das necessidades essenciais de comida, abrigo e leis comunitárias rudimentares, a preocupação imediata das pessoas foi desenvolver substâncias inebriantes.

Evidências da antiga fermentação de cerveja foram descobertas no povoado sumeriano de Godin Tepe, situado no atual Iraque, que remonta a um período entre 3500-3100 a.C., mas tais substâncias já tinham se tornado um aspecto integral do cotidiano da humanidade muito antes disso. O estudioso Jean Bottero assinala:

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Na antiga Mesopotâmia, entre os mais antigos “povos civilizados” do mundo, bebidas alcoólicas eram parte das festividades, assim como um simples repasto que se aproximava de um banquete. Ainda que a cerveja, fermentada principalmente a partir da cevada, permanecesse como a “bebida nacional”, o vinho não era incomum. (84)

Embora o vinho fosse consumido na Mesopotâmia, nunca alcançou o nível de popularidade que a cerveja manteve por milhares de anos. Os sumérios amavam-na tanto que creditavam sua criação aos deuses e a bebida ocupa um papel proeminente em muitos mitos sumerianos, entre os quais Inanna e o Deus da Sabedoria e O Épico de Gilgamesh. O Hino a Ninkasi dos sumerianos, escrito em 1800 a.C., mas provavelmente muito mais antigo, é tanto um louvor para a deusa sumeriana da cerveja quanto uma receita de fabricação.

A cerveja mesopotâmica era um drinque espesso, parecido com um mingau, consumido com uso de um canudo e feito de bippar (pão de cevada).

As cervejeiras eram mulheres, mais provavelmente as sacerdotisas de Ninkasi, e no início a fermentação da bebida acontecia em casa. Consumida como um suplemento às refeições, a cerveja consistia num drinque espesso, parecido com um mingau, bebido com o uso de um canudo. Era feita de bippar (pão de cevada), assado duas vezes e posto para fermentar num tonel. Por volta do ano 2050 a.C., a fermentação da cerveja tornou-se comercial, conforme comprovado pelo famoso recibo de cerveja de Alulu, proveniente da cidade de Ur, datado desta época.

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A Origem e a Evolução da Cerveja

Acredita-se que a atividade de fermentação da cerveja começou em cozinhas domésticas, quando grãos usados para assar pão foram deixados de lado e fermentaram. Os estudiosos Jeremy Black e Anthony Green, para citar somente uma obra sobre o assunto, afirmam que “bebidas alcoólicas provavelmente resultaram de uma descoberta acidental durante o estágio da pré-história dos caçadores-coletores” (Gods, 28). Trata-se de uma teoria aceita há bastante tempo, mas o acadêmico Stephen Bertman apresenta uma alternativa e discute a perene popularidade da bebida:

Muito embora o pão fosse básico na dieta mesopotâmica, o botanista Jonathan D. Sauer sugeriu que sua fabricação talvez não tenha sido o incentivo original para o cultivo de cevada. Em vez disso, ele argumenta, o incentivo real foi a cerveja, descoberta quando sementes de cevada foram encontradas germinando em armazenamento. Esteja Saucer certo ou não, a cerveja logo se tornou o drinque favorito da antiga Mesopotâmia. Como diz um provérbio sumeriano: "Aquele que não conhece a cerveja não sabe o que é bom". Os Babilônios possuíam cerca de 70 variedades e ela era desfrutada tanto por deuses quanto por humanos que, como a arte do período mostra, bebiam utilizando longos canudos para evitar as cascas de cevada que tendiam a flutuar na superfície. (292)

Queen Puabi's Seal
Selo da Rainha Puabi
Osama Shukir Muhammed Amin (Copyright)

O estudioso Max Nelson também rejeita a alegação de que a fermentação de cerveja foi descoberta acidentalmente:

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As frutas com frequência fermentam naturalmente, através da ação de fermentos selvagens e as misturas alcoólicas resultantes costumam ser procuradas e desfrutadas por animais. Os humanos da época anterior à agricultura, em várias áreas no período Neolítico, certamente buscavam tais frutas fermentadas e provavelmente coletavam frutas na esperança que pudessem ter um interessante efeito físico (ou seja, tornarem-se inebriantes) se deixadas ao ar livre. (9)

A cerveja tornou-se popular não somente por causa do sabor mas porque era mais saudável bebê-la do que optar pela água pura disponível. O estudioso Paul Kriwaczek detalha como os sistemas de esgotamento sanitário das cidades da Mesopotâmia eram planejados de forma engenhosa para levar o esgoto animal e humano para fora dos muros da cidade, mas, ainda assim, precisamente onde os suprimentos de água estavam localizados. Kriwaczek observa como isso representava “uma proeza magnífica de engenharia mas um desastre potencial para a saúde pública” (83). As águas de melhor qualidade estavam distantes da cidade, mas os riachos próximos podiam ser canalizados para fabricar cerveja, mais segura como bebida devido ao processo de fermentação, que requeria ferver a água. Kriwaczek prossegue:

Se os cursos de água eram inseguros, as perfurações e os poços não eram mais fornecedores de água potável, já que o lençol freático salino ficava muito próximo da superfície. Assim, a cerveja, esterilizada por seu baixo teor alcoólico, tornou-se a bebida mais segura, do mesmo modo que no mundo ocidental, até a época vitoriana, era servida em todas as refeições, inclusive em hospitais e orfanatos. Na antiga Suméria, a cerveja também constituía uma parcela dos salários pagos aos que tinham de servir a outros para ganhar a vida. (83)

A cerveja transformou-se na bebida predileta em toda a região e não demorou para que se transformasse num empreendimento comercial. Neste ponto, ao que parece, o negócio foi assumido pelos homens, que reconheceram seu potencial lucrativo. As mulheres - as cervejeiras tradicionais - continuaram seu trabalho sob a supervisão masculina. Embora ainda fosse um trabalho manual e artesanal, à medida que ganhou popularidade passou a ser fabricada em quantidades maiores, o que levou ao desenvolvimento de cervejarias em larga escala. A acadêmica Gwendolyn Leick descreve o processo:

A cerveja era produzida principalmente a partir da cevada. Bolos eram moldados dos grãos moídos e cozidos por um curto período. Novamente moídos, eram misturados com água e levados para fermentação. Então a polpa era filtrada e a cerveja armazenada em grandes jarras. A cerveja mesopotâmica só podia ser guardada por um curto período de tempo e precisava ser consumida fresca. Os textos cuneiformes mencionam diferentes tipos, tais como a "cerveja forte", "cerveja suave" e "cerveja escura". Outras espécies eram produzidas de farro [uma espécie de trigo] ou gergelim, assim como de tâmaras a partir do Período Neo-Babilônico. (33)

Mesopotamian Beer Rations Tablet
Tabuinha Mesopotâmica de Rações de Cerveja
Osama Shukir Muhammed Amin (Copyright)

Acreditava-se que os deuses haviam dado a cerveja para a humanidade e, assim, a bebida tornou-se uma oferenda nos sacrifícios realizados em templos da Mesopotâmia. Como já observado, também era utilizada para o pagamento de salários e consumida largamente em festivais religiosos, celebrações e cerimônias fúnebres. A cerveja estava associada a épocas felizes, um drinque que fazia o coração se sentir mais leve, permitindo que se esquecesse os próprios problemas.

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No Épico de Gilmamesh, por exemplo, o herói, perturbado com a morte de um amigo, embarca numa busca pela imortalidade e do significado da vida. Em suas viagens, encontra uma taverneira, Siduri, que sugere o abandono de tais grandiosas aspirações e que ele passe simplesmente a desfrutar a vida enquanto está vivo; para resumir, ela recomenda que ele relaxe e tome uma cerveja. A bebida era amplamente apreciada por uma variedade de razões e em virtualmente todos os tipos de circunstâncias. Black e Green assinalam:

A bebida socialmente comercializada, não para propósitos medicinais ou religiosos, tornou-se comum já no início do segundo milênio a.C., o que é comprovado pelas leis de Hammurabi da Babilônia que regulavam estes espaços públicos. (Gods, 28)

Embora os sumérios tenham desenvolvido primeiro a arte da fermentação, os babilônios levaram o processo adiante e regulamentaram como era fermentada, servida e mesmo quem poderia vendê-la. Uma sacerdotisa que havia sido consagrada a uma divindade, por exemplo, tinha permissão de beber tanta cerveja quando quisesse em sua vida privada, mas estava proibida de abrir uma taverna, servir cerveja ou entrar numa delas para beber em público como uma mulher comum.

O código de Hammurabi ameaça com a morte por afogamento qualquer mulher que trabalhe num bar e sirva uma “medida pequena” de cerveja ao cliente.

No que se refere ao processo de fabricação em si, as primeiras taverneiras eram mulheres, como o Código de Hammurabi deixa claro. Entre outras regulamentações, o código ameaça com a morte por afogamento qualquer mulher que trabalhe num bar e sirva uma “medida pequena” de cerveja para um cliente; ou, em outras palavras, aquela que não preencha o vasilhame de acordo com o preço pago.

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A Cerveja Viaja pelo Mundo

Através do comércio, a cerveja chegou ao Egito, onde a população adotou-a com avidez. Os egípcios amavam sua cerveja tanto quanto os mesopotâmios e as cervejarias se espalharam por todo o país. Como na Mesopotâmia, as mulheres foram as primeiras cervejeiras e a bebida ficou estreitamente associada com a deusa Hathor, em Dendera, em seus estágios iniciais. O estudioso Richard H. Wilkinson destaca:

Hathor estava associada com bebidas alcoólicas que parecem ter sido utilizadas extensivamente em seus festivais. A imagem da deusa é frequentemente encontrada em vasos feitos para conter vinho e cerveja. Assim, Hathor era conhecida como a senhora da embriaguez, da canção e da mirra [perfume], e é certamente provável que estas qualidades tenham aumentado a popularidade da deusa desde os tempos do Antigo Império, garantindo sua permanência através do restante da história do Egito. (143)

Ainda que Hathor encorajasse as pessoas a expressar a alegria de viver através da bebida, deve ser observado que beber em excesso era apropriado somente em certas circunstâncias. Nem Hathor nem qualquer outra divindade egípcia sorria para trabalhadores bêbados ou aqueles que abusassem do álcool em detrimento de outros. O princípio universal de ma'at (harmonia e equilíbrio) permitia a alguém beber em excesso, mas sempre de acordo com as responsabilidades, a família e a comunidade como um todo.

Hathor não era a deusa da cerveja primordial, porém; a divindade egípcia original da bebida era Tenenit (nome proveniente de uma das palavras egípcias para cerveja, tenemu) e acreditava-se que a arte teria sido ensinada a ela pelo próprio grande deus Osíris. Como Ninkasi na Suméria, Tenenit fermentava sua cerveja com os mais finos ingredientes e supervisionava cada aspecto de sua criação.

Beer Brewing in Ancient Egypt
Fabricação de Cerveja no Antigo Egito
The Trustees of the British Museum (Copyright)

O resultado final de seus esforços era uma mistura apreciada por todo os lugares em diferentes variedades. Os trabalhadores no planalto de Gizé recebiam rações de cerveja três vezes por dia e prescrições para várias indisposições incluíam o uso da bebida (mais de 100 receitas para medicamentos citavam-na como ingrediente). Como na Mesopotâmia, era vista como mais saudável do que beber água e, portanto, consumida por pessoas de todas as idades, desde os mais novos até os mais velhos.

Do Egito, a cerveja chegou até a Grécia (como evidenciado pela similaridade de outra palavra egípcia para a bebida, zytum, com o seu equivalente em grego antigo, zythos). Porém, os gregos, assim como os romanos depois deles, favoreciam o vinho forte sobre a cerveja e desprezavam a bebida granulosa como uma beberagem inferior de povos bárbaros. O imperador romano Juliano chegou a compor um poema enaltecendo as virtudes do vinho como um néctar, enquanto observava que a cerveja cheirava como uma cabra. Que os romanos fabricavam cerveja, porém, é comprovado pelos achados no posto avançado de Regensburg, na Alemanha - fundado em 179 por Marco Aurélio como Casta Regina -, assim como em Trier e outros sítios.

A Queda e Ascensão da Cerveja

À medida que o Império Romano se espalhava, o mesmo aconteceu com a cultura e gostos romanos. Desde que os romanos preferiam o vinho sobre a cerveja, ela foi considerada como uma desagradável "bebida dos bárbaros", se comparada com o educado e superior hábito de beber vinho. Ainda assim, parece que foram originalmente os celtas a dar ao vinho um status superior, pois consideravam a cerveja como uma bebida inadequada para um homem. Nelson assinala:

A cerveja era vista como um tipo inferior de bebida alcoólica, visto que estava (pelo menos em geral), por natureza, afetada pelo poder corruptor do fermento, que a tornava uma substância “fria” e, por conseguinte, efeminada, enquanto o vinho, por não sofrer tal efeito, seria uma substância “quente” e masculina. (115-116)

Os gauleses ficaram “viciados pelo vinho importado pelos comerciantes italianos, que eles bebiam sem mistura [com água] e em quantidades imoderadas, ao ponto de caírem em estupor”. Sua paixão pelo vinho ficou tão pronunciada que eles “trocariam um escravo por uma jarra de vinho italiano” (Nelson, 48-49). O desprezo da elite pela cerveja não teve nenhum efeito negativo em seu consumo pela população.

Urartian Beer Pitchers
Jarros de Cerveja Urartianos
James Blake Wiener (CC BY-NC-SA)

Como Nelson deixa claro em toda a sua obra, The Barbarian's Beverage: A History of Beer in Ancient Europe, a mistura reconhecida atualmente como “cerveja” foi desenvolvida na Alemanha e suas técnicas de fabricação tiveram grande influência em toda a Europa. Os alemães estavam fabricando cerveja pelo menos desde 800 a.C., e seus métodos iniciais espelhavam aqueles dos antigos sumérios no que se referia à pureza da bebida, mas com a importante adição de lúpulo. As mulheres também foram as primeiras cervejeiras na Alemanha e a bebida era fabricada com água potável, aquecida, e os melhores grãos. A tradição continuou na era cristã, quando monges assumiram a fabricação e passaram a vender cerveja em seus mosteiros.

Ela era considerada como um presente divino, agora do Deus cristão, e os malefícios que podiam surgir da embriaguez eram vinculados ao demônio (Nelson, 87). A injunção bíblica para evitar a embriaguez (Efésios 5:18) não era vista como aplicando-se à bebida em si, mas sim ao excesso, que abria as portas para os poderes sombrios entrarem na vida de alguém, ao invés do Espírito Santo enviado por Deus. Esta visão da cerveja é similar ao do povo da antiga Mesopotâmia, que culpava um indivíduo por beber em excesso e pelos problemas que iria causar onde estivesse, mas nunca à bebida em si.

Por volta de 770, o campeão cristão Carlos Magno nomeava cervejeiros na França e, como os babilônios antes dele, regulava a produção, venda e o consumo. A cerveja ainda era vista como mais saudável como bebida do que a água, devido ao processo de fabricação, e continuou a ser associada a uma origem divina; sua popularidade também permanecia elevada. O épico finlandês The Kalevala (escrito no século XVII, mas baseado em histórias mais antigas) devota mais linhas à cerveja do que à criação do mundo e exalta os seus efeitos de tal forma que poderiam ser reconhecidos para qualquer um, da antiga Suméria até os consumidores modernos.

Os cervejeiros mantiveram seu status comunitário especial até os séculos XIX e XX, quando grupos abstencionistas ganharam poder político nos Estados Unidos e áreas da Europa e conseguiram proibir o consumo de bebidas alcoólicas em maior ou menor escala. Ainda assim, a duradoura popularidade das bebidas alcoólicas entre os seres humanos não pode ser suprimida pela legislação e iniciativas governamentais não iriam impedir os cervejeiros e negociantes de vinho de atuar novamente. Nos dias atuais, a cerveja é um empreendimento comercial tão lucrativo quando no mundo antigo e a bebida mantém sua popularidade em escala internacional. Se uma pessoa está passando por bons ou maus momentos, a cerveja continua a desfrutar de um elevado status, tal como ocorria na antiga Mesopotâmia: o drinque que faz o coração das pessoas ficar mais leve.

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Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Ricardo é um jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Escritor freelance e ex-professor de filosofia em tempo parcial no Marist College, em Nova York, Joshua J. Mark viveu na Grécia e na Alemanha e viajou pelo Egito. Ele ensinou história, redação, literatura e filosofia em nível universitário.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2018, Abril 17). Cerveja [Beer]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-10181/cerveja/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Cerveja." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação Abril 17, 2018. https://www.worldhistory.org/trans/pt/1-10181/cerveja/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Cerveja." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 17 Abr 2018. Web. 25 Abr 2024.