Da Filosofia à Religião: A Morte de Hipátia

Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Ricardo Albuquerque
publicado em 18 janeiro 2012
Disponível noutras línguas: Inglês, Árabe, italiano, espanhol
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A morte da filósofa Hipátia de Alexandria (v. c. 370-415 d.C.) há tempos vem sendo considerada como a “passagem da filosofia para a religião”, exemplificando a transição entre os valores pagãos da Antiguidade para os da nova religião cristã. Símbolos das crenças mais antigas foram destruídos para dar lugar aos novos e, entre estes símbolos antigos, estava a filósofa pagã.

Hipátia era filha de Theon, o último professor da Universidade de Alexandria (estreitamente associada com a famosa Biblioteca de Alexandria). Um matemático brilhante que copiou com fidelidade o livro Elementos, de Euclides, além das obras de Ptolemeu, Theon, para usar um linguajar moderno, encarregou-se da educação doméstica da filha em matemática e filosofia (Deakin em Science/Ockham). Hipátia ajudou seu pai a escrever comentários sobre estas obras e, com o tempo, redigiu seus próprios trabalhos, além de dar muitas aulas, tornando-se uma mulher de destaque numa cultura dominada por autores e pensadores masculinos.

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Sua influência sobre os estudantes masculinos, porém, não era apreciada pelo arcebispo de Alexandria, Cirilo (mais tarde São Cirilo), que a via como um obstáculo para que aceitassem o cristianismo. Cirilo criticava em especial a amizade dela com o prefeito Orestes, sobre o qual ele temia que exercesse uma influência indevida e perigosa. Autores antigos sugerem fortemente que Cirilo encorajou a turba que eventualmente atacou e assassinou Hipátia, removendo desta forma uma potente influência pagã da cidade.

Hypatia of Alexandria
Hipátia de Alexandria
Elbert Hubbard (Public Domain)

Alexandria na Época de Hipátia

Alexandria, no Egito, havia sido há longo tempo (desde sua fundação por Alexandre, o Grande) um centro do conhecimento e local de peregrinação para filósofos e pensadores de todo o mundo conhecido. A grande biblioteca, que se estima ter abrigado 500.000 livros durante o Período Ptolemaico (323-30 a.C.), estava em decadência, mas ainda representava um polo de atração para intelectuais, principalmente os mais abastados. A cidade, portanto, era um próspero centro pagão no ano 415 d.C. mas, nos últimos quinze anos, tinha se tornado uma comunidade dividida, com judeus lutando nas ruas com a nova religião do cristianismo e pagãos e cristãos preparando suas próprias batalhas.

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Sob o reinado de Teodósio I (r. 379-395 d.C.), as práticas pagãs foram postas fora da lei e os líderes cristãos encorajados a eliminar influências anticristãs e pré-cristãs em suas comunidades. Os templos acabaram convertidos em igrejas ou destruídos; santuários de crenças rivais, como o popular Culto a Antínoo, tiveram o mesmo destino e aqueles que pregavam e ensinavam princípios pagãos não seriam mais tolerados. Em 391, o bispo cristão Teófilo instituiu as políticas de Teodósio em Alexandria e fechou os templos, aumentando as tensões entre as comunidades cristã e pagã.

Sem dúvida, Hipátia era uma mulher bonita, casta e brilhante.

Orestes e Cirilo

O melhor exemplo destas tensões ocorria no relacionamento entre o prefeito pagão, Orestes, e o arcebispo cristão, Cirilo. Orestes tentava manter a paz na cidade, enquanto Cirilo encorajava as turbas cristãs contra os judeus de Alexandria, saqueava suas sinagogas e finalmente os expulsou da cidade. Uma vez resolvida a questão com os judeus, os cristãos voltaram sua atenção para os pagãos.

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Orestes mantinha sua fé no paganismo, apesar do crescente apoio popular ao cristianismo, e cultivava uma estreita relação com Hipátia. Cirilo, ao que parece, responsabilizava Hipátia pela recusa de Orestes de se submeter à “verdadeira fé” e se converter. As tensões entre os dois homens e seus apoiadores aumentavam cada vez mais, pois cada um rejeitava as propostas de reconciliação e paz do outro. Ambos estavam convencidos de suas próprias crenças e se recusavam a considerar as opiniões alheias. A diferença entre eles residia no fato de que Orestes não tinha interesse em ferir ou matar ninguém para promover sua religião, enquanto Cirilo sentia que a criação do reino de Deus na terra justificava a violência.

Hipátia

O fanatismo de Cirilo, que era acompanhado por seus seguidores, resultaria finalmente na tragédia da morte de Hipátia. Ela era popular entre pagãos e cristãos, mas sua insistência em aplicar a razão e o que, hoje, seria chamado de “método científico” para tudo despertava a suspeita de Cirilo de que se tratava de uma influência perigosa e uma ameaça ao cristianismo. O estudioso M. Mangasarian comenta:

Hipátia era uma mulher admiravelmente bem-dotada. Seu exemplo demonstra como todas as dificuldades se submetem a uma vontade forte. Por ser uma garota e, como tal, excluída pelas convenções da época das questões intelectuais, ela tinha todas as razões para abandonar a filosofia nas mãos de mentes mais fortes e livres. Mas a paixão compulsiva de Hipátia pela vida da mente superou cada obstáculo que interferia com seu propósito. (4)

Rachel Weisz as Hypatia of Alexandria
Rachel Weisz como Hipátia de Alexandria
Focus Features, Newmarket Films, Telecinco Cinema (Copyright, fair use)

Sem dúvida, Hipátia era uma mulher bonita, casta e brilhante. Até seus detratores e os defensores posteriores de Cirilo admitem que ela era virtuosa, sábia e uma nobre filósofa. O historiador Will Durant a chama de “a mais interessante figura científica de sua época” e informa que “ela gostava tanto de filosofia que poderia parar nas ruas e explicar, para qualquer um que perguntasse, questões difíceis em Platão e Aristóteles” (Durant, 122). Esta, porém, não é a única descrição da filósofa:

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E naqueles dias apareceu em Alexandria uma filósofa, uma pagã chamada Hipátia, e ela devotava-se todo o tempo à magia, astrolábios e instrumentos musicais, seduzindo muitas pessoas através dos truques de Satã. E o governador da cidade [Orestes] a honrava excessivamente; pois ela o havia seduzido através de sua mágica. E ele parou de comparecer à igreja como era seu costume. [...] E não somente fez isso, mas atraiu muitos crentes para ela, e ele mesmo recebeu muitos infiéis em sua casa (Charles, LXXXIV. 87-88).

Pouco importava a mentira desse relato de magia e satanismo, nem que Orestes fosse um pagão, não um cristão, ou mesmo a nobreza e virtude demonstradas por Hipátia. Um dia, em 415 d.C., "quando estava voltando para casa, ela foi parada [por uma turba cristã], arrancada de sua carruagem e arrastada para uma igreja, onde a despiram e espancaram até a morte com telhas, 'e, quando ela piscou fracamente, arrancaram seus olhos'. Eles então, orgiasticamente, a esquartejaram, membro a membro, levaram seus restos mutilados para fora da igreja e os queimaram" (Deakin em Science/Ockham).

Mangasarian acrescenta:

Alguns historiadores declaram que os monges lhe pediram para beijar a cruz, tornar-se cristã e ingressar num convento se quisesse ter sua vida poupada. De qualquer maneira, estes monges, sob a liderança do protegido de São Cirilo, Pedro, o Leitor, vergonhosamente a despiram e ali, perto do altar e da cruz, arrancaram sua pele trêmula dos ossos com conchas. O chão de mármore da igreja ficou salpicado com seu sangue quente. O altar e a cruz também foram respingados devido à violência com que os membros foram arrancados, enquanto as mãos dos monges apresentavam uma visão revoltante demais para ser descrita. (8)

Hypatia
Hipátia de Alexandria
Charles William Mitchell (Public Domain)

Consequências

Durant, entre muitos outros estudiosos, observa como, após sua morte, houve um êxodo significativo da cidade. “Professores pagãos de filosofia, após a morte de Hipátia, buscaram segurança em Atenas, onde o ensino não-cristão ainda era relativamente […] livre” (Durant, 123). Não somente os filósofos, mas todos os intelectuais fugiram de Alexandria. O Templo de Serápis, de acordo com algumas fontes, foi destruído nesta época (a destruição do Serapeum tinha sido iniciada e executada em sua maior parte pelo tio de Cirilo, Teófilo, cerca de 25 anos antes) e, com ele, qualquer remanescente da Grande Biblioteca e Universidade foi queimado.

Orestes se reconciliou com Cirilo e converteu-se ao cristianismo, encerrando assim as brigas dos seus apoiadores nas ruas de Alexandria. O próprio Cirilo jamais foi acusado pelo assassinato de Hipátia embora, conforme seu apologista John of Nikiu, "[Após a morte de Hipátia] o povo cercou o patriarca Cirilo, denominando-o ‘o novo Teófilo’, pois ele tinha destruído os últimos remanescentes da idolatria na cidade" (Deakin em Science/Ockham). Cirilo eventualmente foi canonizado e Alexandria tornou-se um importante centro da fé cristã. Tomando emprestado uma frase de Durant, "a passagem da filosofia para a religião, de Platão para Cristo" estava completa; ao menos podia-se estar certo disso em Alexandria após a morte de Hipátia.

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Perguntas e respostas

O que Hipátia ensinava em Alexandria?

Hipátia era uma filósofa neoplatônica que ensinava filosofia e o método científico na Universidade de Alexandria.

O que causou o problema entre Hipátia e o arcebispo Cirilo?

Cirilo sentia que Hipátia era um obstáculo à aceitação do cristianismo pelo povo e, especialmente, para que o prefeito Orestes abraçasse a nova fé.

Hipátia era a única acadêmica da Universidade de Alexandria?

As mulheres eram aceitas na Universidade de Alexandria, mas Hipátia é a única professora a ser mencionada em sua época.

Por que a morte de Hipátia foi significativa?

A morte de Hipátia foi significativa porque se acredita que simbolizou o fim do sistema de crença pagão em Alexandria e, conforme alguns estudiosos, no mundo antigo, que passou então progressivamente a adotar o cristianismo.

Sobre o tradutor

Ricardo Albuquerque
Jornalista brasileiro que vive no Rio de Janeiro. Seus principais interesses são a República Romana e os povos da Mesoamérica, entre outros temas.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Joshua J. Mark é cofundador e diretor de conteúdo da World History Encyclopedia. Anteriormente, foi professor no Marist College (NY), onde lecionou história, filosofia, literatura e redação. Ele viajou bastante e morou na Grécia e na Alemanha.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2012, janeiro 18). Da Filosofia à Religião: A Morte de Hipátia [Passing of Philosophy to Religion: The Death of Hypatia]. (R. Albuquerque, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-76/da-filosofia-a-religiao-a-morte-de-hipatia/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Da Filosofia à Religião: A Morte de Hipátia." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. Última modificação janeiro 18, 2012. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-76/da-filosofia-a-religiao-a-morte-de-hipatia/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Da Filosofia à Religião: A Morte de Hipátia." Traduzido por Ricardo Albuquerque. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 18 jan 2012. Web. 03 out 2024.