A Cruzada Albigense (ou Cruzada dos Cátaros ou Albigensiana, 1209-1229), foi a primeira cruzada dirigida especificamente aos cristãos heréticos – os cátaros do sul da França. Sem obter sucesso na supressão da heresia, duas décadas de campanhas “começa-para”, conduzidas por Simon IV de Montfort, atingiu seu real objetivo: anexação política da região do Languedoc, trazendo-a para o controle da Coroa Francesa. A Cruzada estabeleceu um precedente ao atacar companheiros cristãos, o que seria repetido na Alemanha, Bósnia e regiões do Báltico.
Languedoc e os Cátaros
O Languedoc medieval era uma região do sul da França com sua capital não-oficial em Toulouse. A língua literária local era o occitano, que deu seu nome a ampla região cultural do sul da França, Occitânia, da qual o Languedoc fazia parte. A Cruzada Albigense, direcionada contra esta região no primeiro quarto do século XIII, tomou este nome devido à Albi, a cidade com catedral situada a 65 km a nordeste de Toulouse. Albigensiano significa “de Albi”, mas os hereges são mais precisamente conhecidos como Cátaros do Languedoc, mesmo se o primeiro e importante centro pertencente a eles estivesse localizado em Albi.
A região do Languedoc era uma fortaleza de cátaros, um grupo de hereges que procurava promover suas próprias ideias a respeito antigo problema a respeito de como o Deus cristão, um Bom Deus, pôde criar um mundo material contendo o mal. O nome cátaro deriva da palavra grega katharos, que significa “limpo” ou “puro” e provavelmente derivaram dos hereges do bogomilismo mais moderados da Bulgária Bizantina. Os cátaros, presentes também nas regiões da Lombardia, do Rhineland e Champagne, acreditavam que existiam dois princípios de Bom e Mal, uma posição dualística que não era nova e fora promovida por alguns grupos, do século VII, como os paulicianos. Os cátaros acreditavam que uma força maligna (um anjo caído – Satan – ou um eterno deus maligno) havia criado o mundo material, enquanto Deus seria o responsável pelo mundo espiritual. Como os dois mundos são inteiramente separados, os cátaros não acreditam que Deus tenha aparecido na Terra como Jesus Cristo e fora crucificado.
Os cátaros, cautelosos com o materialismo, viviam em comunidades isoladas com o mínimo conforto, embora existissem dois graus de participação ativa com uma sendo estrita e seus adeptos confinados aos monastérios. Os cátaros de maneira alguma eram os únicos grupos religiosos na região do Languedoc e a Igreja Católica, uma sociedade sempre presente, mas por volta do século XIII, eram os cátaros, com suas próprias igrejas, bispos e seguidores de todas as classes sociais, que se apresentavam como a ameaça mais perigosa à autoridade da Igreja Católica na França. Portanto, foi para este grupo específico que o Papado enviou um exército para lidar com ele entre 1178 e 1181. O minguado resultado desta campanha foi umas poucas conversões e promessas de reforma, porém, na primeira década de 1200, ficou claro que muitos senhores do Languedoc apoiavam os cátaros como uma alternativa mais barata às autoridades católicas amantes de impostos. O Papa Inocêncio III (pont. 1198-1216), após uma fracassada campanha de pregação por seus legados, decidiu que era tempo de erradicar os hereges à força. A gota d’água foi o assassinato de um legado do Papa próximo a Arles em 1208, feito por um servidor do mais poderoso senhor do Languedoc, Conde Raymond VI de Toulouse (cond. 1194-1222).
Papas e Reis
O Papa Inocêncio III concedeu à campanha contra os hereges o status de Cruzada, o que significou que os fundos da Igreja podiam ser dirigidos para sua realização e as pessoas que dela participassem teriam garantida a redenção de seus pecados como os cruzados na Terra Santa. Foi a primeira Cruzada especificamente dirigida a cristãos, ao invés de muçulmanos, muito embora a Quarta Cruzada (1202-1204), também convocada por Inocêncio, tenha saqueado Constantinopla cristã, o que não era o objetivo inicial da Cruzada. Foi também a primeira vez que a Igreja convocou uma força internacional de guerreiros para combater hereges, pois anteriormente tais ataques haviam sido conduzidos em um nível local. A ideia de atacar companheiros cristãos ganhou terreno graças a figuras como Santa Maria de Oignes que afirmava ter tido uma visão na qual Jesus Cristo manifestava sua preocupação a respeito da heresia no sul da França e Santa Maria, ela mesma, viajou pela região. O que se precisava a seguir era apoio político para justificar os argumentos eclesiásticos para atacar o sul da França.
Acompanhando um apelo de Inocêncio III e a excomunhão de Raymond VI de Toulouse, a campanha proposta foi apoiada pelo rei francês Philip II (rein. 1180-1223) e seu filho, (o futuro) Louis VIII (rein. 1223-1226) como um meio para aumentar o controle da coroa sobre o sul da França – naquela época uma região mais simpática com os reinos do leste da Espanha. Realmente, os cátaros estavam presentes somente em uma pequena área do sul da França, o que leva a crer que a justificativa religiosa para a campanha foi, talvez, somente uma desculpa no processo de formação do Reino da França e fornecendo ao seu rei acesso direto ao Mediterrâneo. Consequentemente, com o apoio da Igreja e da Coroa e a promessa de que seriam confiscadas as terras dos barões derrotados, houve a cobrança de impostos nas regiões norte e central da França e reuniu-se um exército em 1209. Embora o Rei francês estivesse muito preocupado com sua rivalidade com o Rei João da Inglaterra (rein. 1199-1216), este forneceu um contingente de soldados reais, bem como fizeram-se presentes importantes líderes como Simon IV de Monfort e Leopold VI, Duque da Áustria (duc. 1198-1230).
Guerra: Simon de Montfort
O exército cruzado, ao deixar Lyons e descer o Rio Rhône em julho de 1209, logo encontrou o primeiro problema. Raymond de Toulouse, figura importante do inimigo, pelo menos em termos de propaganda, havia aberto negociações com o Papa e, após uma conveniente penitência e a entrega de uma área de terra, uniu-se ao exército cruzado como um aliado. Portanto, o primeiro alvo dos cruzados foi não atacar Toulouse, mas a área em torno de Albi, controlada por Raymond Roger Trencavel em 1209. Trencavel não era um herege, mas suas terras abrigava um bom número deles. Os cruzados eram liderados por Simon IV de Montfort, um homem experiente que já havia feito campanhas bem-sucedidas na região, dois anos antes, contra os exércitos de Raymond de Toulouse. Mas agora, Simon tinha o apoio da Igreja para suas ambiciosas conquistas. Além dos exércitos de nobres e cavaleiros em ambos os lados, havia, também, milícias locais, a Confraternidade Branca contra os hereges e a Confraternidade Negra apoiando os barões locais.
Finalmente, a fraca unidade política dos senhores do sul e a própria tradição deles de ferrenha independência, levou a que o exército cruzado obtivesse vitória atrás de vitória, mesmo enfrentando problemas para manter homens no campo de batalha, pois parecia pouco ganho material para eles mesmos, exceto o ganho espiritual. Na verdade, o Papa teve de insistir que somente um mínimo de 40 dias de serviço militar garantiria uma completa remissão de pecados dos participantes. A campanha foi, devido a isso, esporádica e brutal. Tornou-se uma situação muito longa, caracterizada por prolongados sítios, sem auxílio devido à crônica falta de dinheiro da parte de De Montfort, e a saída de cruzados a cada 40 dias.
A primeira grande ação foi quando Raymond Roger Trencavel abandonou Béziers em 21 de julho de 1209. A cidade mesmo assim foi sitiada pelos cruzados e, após a recusa de uma oferta de trégua, se os hereges se entregassem, a cidade foi brutalmente saqueada. Os seus habitantes, aproximadamente 10.000 pessoas, foram assassinados a sangue frio. A cidade tinha, provavelmente, algo como 700 hereges e ficou claro para todos que esta era uma campanha de conquista, não de conversão. O choque pelo massacre foi tão grande que a cidade de Narbonne rendeu-se imediatamente e os moradores fugiam dos castelos e cidades que estavam passíveis de serem o próximo alvo de um ataque dos cruzados. O poderoso castelo de Carcassonne caiu em 14 de agosto de 1209, Trencavel foi colocado na prisão e dela não saiu vivo. Simon de Montfort, por sua vez, se apossou das terras de Trencavel.
Mais atrocidades seguiram acontecendo em ambos os lados. Quando Lavaur foi capturado por De Montfort em 1211 em Aimery, o senhor de Lavaur e Montréal, foi enforcado, sua irmã jogada em um poço, 80 de seus cavaleiros executados e até 400 cátaros queimados vivos. Para os hereges capturados, julgamento e morte pelo fogo eram os destinos comuns. Significativamente, no entanto, muitos dos alvos dos cruzados não eram fortalezas cátaras. Toda a região passou a ser uma zona de guerra perpétua, com o consequente colapso nas regras da lei e da ordem social. Em 1211, a crise aprofundou-se quando Raymond de Toulouse decidiu que os cruzados estavam fazendo muitas exigências em seu território e tornou-se a si mesmo o inimigo número um ao se fazer, novamente, independente.
Após derrotar um exército de Toulouse-Foix em Castelnaudary em setembro de 1211, De Montfort capturou grandes áreas do sul em 1212. Raymond, temporariamente, fugiu para a Inglaterra. Embora a França ao norte estivesse fazendo planos de governo para a região a região, em 1213, guerra de guerrilha espalhou-se por todo o sul. Os massacres, incêndios e mutilações continuavam sempre que uma cidade ou castelo fosse capturado. Em consequência, o Papa cancelou o status de Cruzada da campanha, mas seria dado novamente, ainda que esporadicamente, nos próximos 15 anos. Em 1214, a desordem trouxe reis estrangeiros bafejando interesse nas escolhas das mais selecionadas terras à medida que se tornavam disponíveis, notavelmente o Rei de Aragão e o Rei João da Inglaterra, que ainda tinha propriedades na França.
Por volta de 1215 a conquista do Condado de Toulouse e dos condados dos Pirineus já estava completa e o Príncipe Louis realizou uma viagem com um exército que não entrou em qualquer batalha. Então surgiu uma retaliação local, com os defensores muito auxiliados pelo retorno de Raymond para sua fortaleza em Toulouse em 1217. A Cruzada sofreu outro golpe com a morte de De Montfort durante o sítio daquela cidade em junho de 1218. Sua morte instantânea se deu quando foi atingido por uma pedra atirada de uma catapulta ou mangonela. Louis assumiu as pretensões territoriais de De Montfort e fez outra breve aparição no sul, capturando Marmande em junho de 1219.
A guerra prosseguia em um nível local, agora conduzida principalmente pelos aliados de Toulouse e pelos barões que haviam ganhado terras de De Montfort. Raymond de Toulouse morreu em 1222 e foi sucedido por seu filho Raymond VII (cond. 1222-1249), que reivindicava muito das antigas terras de seu pai e até mesmo Carcassonne em 1224. Louis, agora Rei Louis VIII após a morte de seu pai em 1223, estava determinado a expandir seu reinado, e com o apoio do Papa Honório III (pont. 1216-1227), outra cruzada foi lançada com todos as bênçãos papais. Avignon foi sitiada e capturada no verão de 1226. Percebendo o inevitável, muitos senhores do Languedoc juraram homenagem ao Rei, mas Raymond VII resistiu. Então, retornando a Paris em novembro de 1226, Louis VIII veio a morrer de disenteria.
O novo Rei da França, Louis IX (rein. 1226-1270), tornar-se-ia um dos mais comprometidos de todos os Reis cruzados medievais e, portanto, a campanha Albigense foi um teste ideal para o seu fervor religioso que, ao final, o levaria à santidade. Uma série de vitórias chegariam nos próximos dois anos e Raymond VII de Toulouse acertou termos de rendição. A Cruzada Albigense chegou a uma conclusão com o Tratado de Paris em 1229. A região do Languedoc era, agora, parte do Reino da França.
Consequências
As campanhas reduziram dramaticamente o poder e a riqueza da nobreza do Languedoc e a reformulação do mapa da política real foi habilmente completada quando as propriedades de Raymond VII passaram a seu herdeiro, Alphonse de Poitiers, irmão de Louis IX, em 1249. Os cátaros, enquanto isso, não foram totalmente eliminados e suas igrejas e instituições continuaram na região, ainda que em escala reduzida. Foi lançada uma Inquisição, mas sua intenção foi converter através do argumento, não de violência e um de seus efeitos foi a implantação de uma Universidade em Toulouse em 1229. Essa abordagem intelectual foi lenta, mas com muito mais sucesso que a Cruzada e por volta do primeiro quarto do século XIV os cátaros deixaram de existir como um corpo de crentes organizado e distinto.
Refletindo a ambiguidade da Cruzada Albigense e a desconfortável verdade de cristãos combatendo cristãos, algumas canções populares do período criticavam os Papas por outorgarem à campanha o status de Cruzada e a seus participantes a remissão de pecados. Por exemplo, como a canção sirventes de Guilhem Figueira diz:
Roma, sem dúvida que conheço a verdade; que com a fraude de um falso perdão enviastes os barões da França para atormentar bem longe do Paraíso e, Roma, matastes o bom rei da França atraindo-o para bem longe de Paris com vossa falsa pregação. (Citado em Riley-Smith, 111)
Desenvolveu-se ali um certo tipo de nostalgia e criação de mito histórico a respeito da Cruzada Albigense. Os povos do sul da França algumas vezes usavam o episódio como um exemplo de sua independência cultural de um norte da França dominador, personificado pelo governo central em Paris. Os hereges também atraíram as mentalidades modernas pelo seu vegetarianismo e aperfeiçoado papel da mulher, porém estas facetas da cultura são para se ignorar o fato de que existiram atrocidades e intolerância de ambos os lados durante a Cruzada e que deu início ao processo de cristãos lutarem uns contra os outros, uma situação que iria arruinar a política e a sociedade europeia pelos séculos vindouros.